Gonçalo M. Tavares – O Reino: tetralogia

Na literatura do escritor angolano, o discurso de determinada personagem serve como uma luva para a realidade que ele descreve

O primeiro romance da tetralogia é Um Homem – Klaus Klump: um homem de família rica edita livros que “são bombas”, subversivos. Preso, passa tempo na cadeia e apenas não é morto devido ao dinheiro de sua família. As pessoas vivem períodos difíceis durante a guerra. Por fraqueza ou porque são assim mesmo, aprendem a limpar o caminho dos cadáveres da guerra. Klaus sai da cadeia, a guerra acaba e ele volta a assumir os negócios da família. Envolve-se com uma mulher rica, viúva do dono da empresa onde trabalhava Walser (que aparecerá no segundo romance), mulher que tinha “servido” aos militares na época da guerra.

Essas ironias da vida pregressa das pessoas dão o tom da obra. Tudo encaminhava para que Klump, vítima também dos horrores da guerra, voltasse a ser o “subversivo” que era. Mas não. Há duas possibilidades aí: ou ele “aprende” a violência verdadeira na cadeia ou simplesmente sua “essência” era a do dominador. Klump vai perdendo a razão na cadeia-hospício. Chega a furar o olho do pai com um caco de vidro.

Bem; as pessoas vivem os resultados de um estado de exceção — e ninguém pode sair incólume disso. Nesse primeiro volume já se delineia, também, um ponto chave para uma leitura possível da obra: a loucura. Diversas personagens são loucas, vivem parte da vida em hospícios. Saem piores, destroçadas ou simplesmente perdidas. Em paralelo com a loucura, há a presença do médico, que teoricamente deveria “curar”, mas ele também é um câncer social, algo que vai explodir no último volume da tetralogia, com Lenz Buchmann.

Trata-se também de uma alegoria para a relação entre o dominado e o dominador, em vários níveis das relações humanas: desde a vida íntima de um casal, até as grandes estruturas de poder. Klaus aprecia apanhar borboletas e apertá-las até que delas saia uma gosma. Ele raciocina que as borboletas são bonitas até quando esmagadas. Assim é a relação dos poderosos com os sujeitos assujeitados. Só uma mente extremamente doentia pode desejar um poder totalitário, que cuide das “pessoas de bem” e torture “apenas os subversivos”.

Na cadeia-hospício, um personagem diz que o homem não arrisca a cuspir diretamente na boca de um lobo, mas pode urinar na cabeça de um cão. O assujeitado permite-se emporcalhar pelo dominador. Não reage. E ainda lhe lambe as botas. De todo modo, cada personagem tenta sobreviver ao regime a seu modo.

A democracia, diz o narrador, pela mente de Leo Vast, é “como a borracha que vai derretendo lentamente até preencher por completo a superfície de um compartimento”. A democracia, nesse sentido, é a instalação de uma covardia mútua. É a perda da força de um conjunto de homens; é um “ganho da fraqueza global”.

Tavares nasceu em Angola. Sabe bem do que fala. Seu livro serve de alerta para Angola, para o Portugal onde mora, para o Brasil. Já era hora de um romance dizer tanto sobre os totalitarismos que os falantes de português já viveram. Com Klump, começa a saga que virá em mais três romances.

Para o homem de negócios em que se transforma Klump (ou que já habitava Klump), a fuligem de uma máquina é mais importante que a hepatite de um funcionário. O narrador se pergunta: “A ferrugem da máquina valerá quanto? Cem homens com hepatite?”. Essa pergunta permite o livro seguinte.

O segundo romance da tetralogia é A Máquina de Joseph Walser: um homem coleciona peças incertas, metálicas, as quais enumera, descreve, mede. Trata-se de uma coleção que mantém escondida, em meio a uma guerra. Trabalha numa empresa, com uma máquina, que lhe corta um dedo, justamente o dedo que lhe permitiria apertar o gatilho de uma arma, numa situação bem específica do romance.

Há pelo menos três máquinas nesse livro assustador — ou muitas, se seguirmos o raciocínio de Tavares sobre o mundo que ele constrói. Há a máquina com a qual Walser trabalha a vida toda, a máquina que justamente vai lhe arrancar um dedo. Há a máquina humana (a do corpo físico de Walser), muito para além de uma crítica ao sujeito (ao sujeito assujeitado) do mundo capitalista ou o sujeito que os modernistas já haviam identificado como um mero número. Walser também é uma peça da grande máquina do mundo, um mundo pós-apocalíptico, um mundo no qual ele não é ninguém, exceto uma peça que faz esse mesmo mundo funcionar, sem absolutamente nenhuma possibilidade de felicidade. Sua esposa o trai com seu chefe e “amigo”, que acaba por o salvar da prisão e da morte, numa época de guerra em que todos são inimigos. Embora depois seja a “máquina” de sua possível morte.

As peças que Walser coleciona, sem método algum, sem lógica, exceto o fato de serem manufaturas e metálicas, são metáfora do seu tempo para o sujeito assujeitado. Elas funcionam como engrenagem se juntas, mas não valem nada se separadas.

No segundo romance da tetralogia, fica muito claro — e cada vez mais claro — que se trata de uma narrativa alegórica, evidente. Narrativas alegóricas não são novidade na história da literatura e a ironia e o riso, idem. Não admiraria se Tavares houvesse lido Luciano, Rabelais, e autores modernos, tão conhecidos do grande público como o Ray Bradbury de Fahrenheit 451, o Orwell de 1984 e o Huxley de Admirável Mundo Novo, mas já no primeiro volume percebemos o quão cruel é a narrativa de Gonçalo, o quão a obra se distancia daqueles romances todos, muito provavelmente sua obra mais sombria. Estou na dúvida se se pode chamar a isso de romance distópico, como se costuma dizer…

Há outras evidências nesse livro, que começam a surgir: o fato de como Gonçalo constrói toda a catedral de sua obra ficcional (e poética também) a partir desse universo sombrio. Não é em vão que ele tem uma coleção chamada O Bairro, onde habitam personagens “reais” e outras “imaginárias”: esse espaço que ele constrói, esse labirinto que ele constrói, com fachos de luz de Borges e Kafka (temperado por aquele bom Murakami e não pelo ruim Murakami, o bom Murakami dos mundos paralelos e possíveis) fica mais nítido a cada livro lido. É assustador. Não há misericórdia aqui.

Klaus e Walser têm lampejos. Seria possível que se redimissem ou que encontrassem redenção. Mas não conseguem abandonar seu destino. De todo modo, a guerra traz o pior dos homens. E, de todo modo, num quadro totalitário, todo homem é pequeno. Vence a violência. A democracia, como entendida pela rica família Leo Vast, é apenas um momento que precede uma guerra que vai “limpar” a sociedade, que vai matar um número x de pessoas de modo que a sociedade volte a ser “tranquila”.

Outro processo típico da literatura de Gonçalo é como o discurso de determinada personagem serve como uma luva para a realidade que ele descreve: é como se a tese fosse comprovada pela realidade mesma. No terceiro volume isso não ficará apenas claro: vai se tornar algo assombroso, cada vez mais assombroso. Aqui, nesse volume, a ideia do “jogo” (físico e cultural entre os amigos da indústria) transforma-se numa estrutura social, violenta. “Os dados na mão simplificam o mundo”, diz uma personagem. Nesses quatro livros, cai bem certo raciocínio de Bataille: “se for necessário, um sentimento de transgressão é mantido na aberração”. Nesse universo totalitário, a aberração ganha novos formatos.

O leitor vai perceber também como as obras vão se costurando aos poucos, aos detalhes. Para fugirmos da figura banal de um quebra-cabeças, valeria pensar em algo mais complexo…

O terceiro romance da tetralogia é o mais tenebroso – Jerusalém: nunca li nada parecido escrito em português. O título vem de Salmos, 137:5 e com certeza é o mais complexo dos quatro, o mais aterrador e o mais bem construído. Esse romance sozinho já seria uma genialidade ímpar, mas veio junto com os outros três: estava certo Saramago ao admirar-se com a potência desse romance, escrito por um jovem de trinta e poucos anos. Tudo nele é perfeito.

O leitor atento vai encontrar diversos laços com os demais livros da tetralogia. Embora as personagens não se cruzem abertamente como Lenz e Walser, por exemplo, as ligações aqui se darão pelo espaço social e histórico e por sutilezas típicas da pena de Gonçalo, como o próprio título sugere. No Salmo em questão, roga-se a Deus para que a mão direita seque caso Jerusalém seja esquecida. Essa mão seca — ou essa mão atuante — aparecerá na vida de Klaus, Walser e Lenz de diferentes formas e em diferentes situações.

Cabe ao leitor decidir o que é essa Jerusalém que não deve ser esquecida. Valeria lembrar que a oração por uma Jerusalém que deve habitar coração e mente do fiel é rezada estando este fiel feito escravo em outro país. O que seria tal escravidão no romance de Gonçalo? A pergunta é e não é retórica. Claramente temos sujeitos aí feitos escravos no seu próprio país. Ao mesmo tempo, as escolhas pessoais também podem gerar uma escravidão. O cativeiro sugerido pelo salmo e pela palavra Jerusalém é físico, mas também moral, e, no romance de Gonçalo, tem a ver com uma noção de loucura e de sanidade. O que seria a libertação dessa Jerusalém?

Bom: as personagens vão se encontrando numa narrativa de vai e vem, que alterna passado e futuro. Você pode dizer que isso não é novidade na literatura: vários autores trabalham a narrativa moderna em vai e vem entre passado, presente e futuro. Mas tratamos aqui de Gonçalo: nada nele é gratuito. Então, temos uma leitura para fortes.

A loucura de um cidadão comum, a raiva do “cidadão de bem”, o ódio de classes do sujeito da elite, a loucura já comum dos seres, tudo isso aumenta de tamanho e poder numa sociedade emburrecida e numa sociedade sob o domínio de um governo totalitário. Certamente, a falta de estudo, a dificuldade de acesso ao saber, o discurso como mantra da posse pelo objeto, o discurso como mantra da importância do trabalho (que só enriquece os ricos), tudo isso junto é um plano que dá certo: enfraquece os mais fracos e fortalece os mais fortes, mas até o momento que o tecido do templo se rompe porque todo exagero tem limite. A explosão de ódio ocorre, então, em todos os níveis sociais. Não há espaço para a dignidade (nem falarei em felicidade) numa sociedade carcomida pela ideologia da extrema direita [como já não bastassem as loucuras comuns dos homens…].

O quarto volume da tetralogia é Aprender a Rezar na Era da Técnica. Aqui, Lenz deseja ocupar o lugar do pai, o que por si só é altamente simbólico. Ocupar a figura do pai é tomar o poder em toda sua extensão. Seu desejo maior é o de “curar não apenas os indivíduos, mas a cidade”. Bem; ele é o grande câncer de todos os totalitarismos, mas é assim que os totalitarismos funcionam. Pouquíssimas obras atuais conseguem com tanta precisão mostrar os perigos do totalitarismo.

Assim como nos demais volumes, há uma atmosfera sombria, de fato, mas uma linguagem segura e – diria – até tranquila. Ela é a linguagem do sujeito que diz “eu apenas cumpria ordens”, quando enche câmaras de gás e matas indivíduos. É a mesma linguagem de tantos líderes mundo afora que odeiam toda e qualquer pessoa que não os siga, que seja “diferente” de seus padrões de “pessoa de bem”, é a linguagem do sacerdote que usa o chicote numa mão e um terço na outra e que perdoa qualquer pecado, mesmo o dos mais perversos crimes.

Como mencionei acima, não se trata de uma obra fácil, tampouco para leitores em início de um processo de leitura. Gonçalo, mesmo jovem, já tem uma obra grande – em volume e em discurso. Já escrevei aqui e em outros lugares que é um escritor copioso e obcecado pela qualidade e pela investigação literária. Dos poucos.

Em português, não há nada que se iguale a ele.

p.s. O que mais me chamou a atenção nesses romances não foi a presença do homem já tocado pelo mal desde o berço e sim o homem a ser tocado pelo mal. Ele é um dos maiores perigos dos tempos atuais. Sobre esta situação, sob ângulos diferentes, sugiro Submissão, de Michel Houellebecq, e as obras de Ana Paula Maia.


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