Céline

De castelo em castelo, de uma margem à outra

A França de Céline estava acostumada a romancistas com grandes ciclos romanescos. Talvez o mais honorável deles tenha sido Balzac. Os trinta volumes de uma obra regular e aparentemente incansável desde há muito começaram a ser vendidos como fossem um único, singular e grandioso romance. Na época da Belle Époque, os franceses conheceram o trabalho de Romain Roland (com um ciclo imenso de dez obras sobre pedaços da vida de Jean-Christophe) e logo em seguida o épico trabalho de Roger Martin du Gard sobre a vida (ou parte dela) de Os Thibaulds. Pareciam escritores incansáveis, imbatíveis na arte da escrita de um monte de coisas, e não podemos esquecer de Anatole France e sua vizinhança com os autores citados aqui.

Todos eles foram laureados com o Nobel, registre-se. A França ainda teria um escritor como André Gide (talvez o mais moderno deles todos), também aceito na comunidade internacional, desde que não se citassem suas passagens mais abertas sobre “o amor que não pode falar seu nome” e desde que se esquecesse que ele tinha escrito Córidon. Mas digamos que Gide era um bom cavalo que corria por fora das pistas, ao lado do melhor cavalo de todos os tempos, um escritor moderno, discutido, copiado, incensado, mas que não conseguiu o prêmio máximo da Europa da época. Trata-se de Marcel Proust.

Marcel Proust.

Bom; com esse quadro já é possível imaginar que a genialidade de Céline não passasse despercebida, mas, digamos, de modo controverso, dada sua agressividade, seu fôlego narrativo, sua linguagem despojada embora não rude (ao contrário, extremamente criativa e elegante), assim como sua ironia e seu desprezo por tudo que soasse ou cheirasse antigo, clerical, ultrapassado, vulgar. Hoje, Céline não é nenhuma descoberta (como ocorreu com autores esquecidos ou únicos, como Tsípkin, por Sontag), mas continua causando estrondo. Impossível passar incólume por sua escrita. Até mesmo autores de origem judaica (Céline teve uma produção de libelos antissemitas…), como Roth, compreenderam a grandeza de sua escrita — e não foram poucos os escritores, sobretudo fora da França, que renderam homenagens abertas a ele ou que acompanharam seu modo de escrita, indiretamente.

Viagem ao Fm da Noite é, muitas vezes, aquele livro que falta nas listas de “grandes romances do século tal”. Por vários motivos, dentre os quais o fato de que listas são uma bobagem sem tamanho. Mas fundamentalmente porque grande parte dos leitores que se aventuram a fazer listas (eu já fiz as minhas) lê apenas o óbvio. Embora ele não seja uma descoberta, como eu disse acima, passa incólume por um monte de bibliotecas particulares de leitores famintos.

Capa de Viagem ao Fim da Noite.

A tradução de Rosa Freire D’Aguiar é uma preciosidade. Algumas soluções que ela dá para a (in)corruptível escrita de Céline (que mistura as linguagens primárias e secundárias da língua, se pensarmos em Bakhtin nesse momento de roubar algum teórico que nos socorra) são coisa de mestre. Há duas edições por aí da Cia. das Letras, uma delas de bolso. São mais de 500 páginas de puro deleite. Para quem gostar, tem mais de Céline nas estantes virtuais da vida; Morte a Crédito, por exemplo. Já De Castelo em Castelo acho que é algo para amantes veniais de Céline.

Do século de Stendhal ao século de Bernanos, a França deu ao mundo escritores e escritos incríveis. Se a língua de Joyce e Woolf foi visitar destemidamente terrenos inconstantes e pouco acessíveis, lugares a serem desbravados, o francês não deixou por menos e Céline é um de seus melhores exemplos, mas com outros exércitos e outras armas. Língua de cultura erudita, falada durante décadas ou séculos em cortes poderosas, língua de divulgação de cultura, língua de dominação cultural em todo o planeta, tudo isso, claro, facilitou a expansão do francês como um grande farol do saber e da produção intelectual. De todo modo, foi a língua em que muitos “dominados” se expressaram também, seja no Caribe, na África ou na Oceania. Ler Céline é desvendar alguns caminhos desse idioma, em variados tons.


Para ir além

Outro outono
Uma nação forjada na base do trabalho escravo

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima