Cartas a uma Negra – Françoise Ega

Sendo negras e mulheres, não foram tratadas como escritoras, mas quase como um espetáculo teatral ou de circo

“O mais penoso para uma faxineira, Carolina, é o cheiro da vida dos outros.”

Você não lerá um livro comum. E muitos são os aspectos que provam a forma lapidar com que comecei este texto. A estratégia de escrita de Françoise Ega é deslumbrante. Desta vez, para facilitar o entendimento, já que são muitos e diversos tópicos, farei uma lista:

A) Ela escreve um romance epistolar, mas há algo de falso aí. Teoricamente, um romance epistolar teria um destinatário, real ou fictício; no caso, a destinatária seria a escritora brasileira Carolina Maria de Jesus. Carolina nunca receberia as cartas, pois não se trata de cartas e sim de páginas de um diário feito ao modo de cartas. Muitas são as possibilidades dessa escolha: talvez Ega precisasse de um interlocutor; talvez ela quisesse evidenciar a triangulação entre ela, Carolina e os antepassados africanos, que têm sofrimentos semelhantes; talvez ela quisesse mostrar a distância que há entre ela, Carolina e os europeus; talvez ela quisesse mostrar a proximidade entre ela e Carolina, a despeito dos oceanos, da língua e das experiências pessoais. Maméga, a personagem do livro, assim como Ega, trabalhou como doméstica em Marselha, sofrendo todo tipo de abuso; Carolina vivia da cata de resíduos, do que a sociedade joga fora. Claro que a situação financeira de Maméga é melhor que a de Carolina, mas em relação aos direitos humanos, ambas sofrem as mesmas perseguições, em países distintos.

B) O romance epistolar aqui tem a forma de um diário. Há muitos romances e textos não ficcionais assim editados e publicados: diários. Mas os diários de Ega vão construindo uma trama romanesca complexa, com personagens escolhidos, cenas elaboradas ao modo de capítulos, o que só fica claro na leitura e não na apreciação visual da edição. Ao mesmo tempo em que há uma “trama”, cujo objetivo principal seria a publicação do primeiro livro da personagem (que pode ser ela mesma, tornada personagem, Maméga), há o confessional, típico dos diários, não muito distante dos textos epistolares, mas que aqui ganha um outro contorno ou camada: uma literatura de denúncia. A denúncia também existe em Carolina, mas em Ega ela é mais contundente e mais reflexiva, outra característica da obra de Ega.

C) Não se trata exatamente de um romance que mostra e aponta os sofrimentos pessoais (embora eles existam). Trata-se, com mais peso, de apontar o sofrimento alheio, como outros autores e pensadores antes dela teriam feito: dos autores russos que ainda no século XIX foram escrever sobre prisões terríveis (vide A Ilha de Sacalina) até a filósofa Simone Weil, que detalhou com precisão o sofrimento dos trabalhadores da indústria. Não seria, portanto, a primeira vez que um escritor se debruça sobre o sofrimento alheio, mas uma martinicana na França, bem, isso carrega uma camada de ineditismo.

Carolina de Jesus publicou em 1960 Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. Crédito da foto: reprodução.

D) As novas formas de escravidão: se você já estudou o tema ou simplesmente se interessa por ele, romances que abordam a vida dos subalternos não são novidade, como mencionei no item anterior. Os subalternos sempre serviram de contraponto aos seus donos ou patrões, desde a Antiguidade, e já serviram de voz contrária à dos poderosos, fosse/seja através do humor/riso, seja/fosse através da descrição de horrores sofridos, seja/fosse com os dois (me ocorre Apuleio, agora). Para não esticarmos muito a conversa, e trazendo o subalterno para a literatura moderna, temos no século XIX Octave Mirbeau, que escreve O Diário de uma Camareira. Mas as diferenças com Ega são maiores que as proximidades. Mas há uma obra em particular que talvez estabeleça mais pontes com Ega: Vasto Mar de Sargaços, de Jean Rhys. Mas há uma diferença, igualmente, considerável também entre Ega e Rhys: uma delas é negra. Como diz a personagem de Cartas a uma Negra: as mulheres negras estudadas que vêm para a Europa tornam-se faxineiras; as mulheres brancas que vão para o Caribe tornam-se damas, com empregos bons [palavras minhas]. Rhys segue o caminho contrário das brancas europeias, mas é e continua sendo branca. Os brancos no livro de Ega dizem: “quero uma negra para mim” e não “quero uma branca para mim”. Muitos traficam mulheres “das ilhas”, e as fazem trabalhar em regime de quase-escravidão. A situação, portanto, das mulheres negras não pode ser desconsiderada: a obra de Ega aponta com precisão como e quando seus corpos são atormentados pelo sexismo, pela relação metrópole-colônia, e até mesmo pela relação entre negros já posicionados e negros ainda por se posicionar. Esse aspecto merece um estudo mais profundo e lamento não poder falar mais sobre ele, mas posso resumir: os negros “já posicionados” na sociedade branca europeia copiam o modus operandi dos brancos. E a relação entre sujeitos negros oriundos de diversas ex-colônias francesas também não é lá muito cordial. De todo modo, são os brancos que decidem o destino dos homens e das mulheres negras, assim como fazem com sujeitos brancos oriundos do leste europeu. Há um trecho que trata disso, inclusive.

E) O livro funciona como um passeio pela realidade francesa, em pelo menos duas cidades: Marselha, um dos pontos de chegada de antilhanos, e Paris, para onde iam e vão muitos antilhanos, magrebinos, negros da África subsaariana, etc. A estratégia de Ega é fazer paragens e esmiuçar o que ocorre em cada uma delas: nesse périplo se descobre a patroa que atrasava o relógio para esticar o trabalho da empregada; a incapacidade de convívio civilizado entre brancos europeus e antilhanos; o abuso moral, financeiro, sexual; tráfico humano; machismo, falsidades. Então, o que é chamado de romance epistolar ou diário se torna um romance com grande número de personagens e extrapola com muito louvor a estreita definição do que venha a ser um romance epistolar. Se você pensou em Choderlos de Laclos, teve uma excelente lembrança.

F) A sutileza, o olhar apurado, a delicadeza por vezes irônico-cômica como Ega constrói até mesmo passagens brutais – como quando a personagem Maméga sofre tentativa de sedução de um padre congolês – são de alguém que domina muito a arte da escrita. Me dói ter de escrever isso porque a todo tempo parece que precisamos provar que Ega tinha capacidade de escrita. Falarei disso logo, logo.

Não é de se admirar que a Editora Todavia tenha tido a maravilhosa ideia de publicar Cartas a uma Negra agora, num momento tão importante das discussões sobre negritude, branquitude, diásporas negras, violência contra negros. O que é de se admirar é que é a primeira vez que o romance é publicado no Brasil. Mais admirável ainda é a falta de estudos que cotejem o texto de Ega com o de Carolina Maria de Jesus, afinal Carolina é – ou seria – a “destinatária” dessas “cartas” escritas por Ega (a escritora) ou por Maméga (a personagem).

Há muitas proximidades entre a obra de Ega e a de Carolina: como o mercado as tratou e trata, os discursos de venda, os conteúdos, a recepção dos leitores, novas leituras chegando. Em relação ao mercado, ele sempre as vendeu como algo exótico, quase bizarro, e isso é uma das mais tristes constatações sobre a obra de uma e a obra da outra. Os discursos sobre elas sempre privilegiaram o fato de Carolina ter vindo de uma favela e de Ega ter ido da Martinica para a França. Sendo negras e mulheres, não foram tratadas como escritoras, mas quase como um espetáculo teatral ou de circo. Caso você encontre matérias sobre as duas da época do lançamento do livro de Carolina, principalmente, vai entender melhor o que escrevi.

Se você leu Knut Hansun, e se leu Fome, em particular, deve se lembrar de passagens em que a personagem (Hansun ele mesmo) descreve o frio nas mãos e o toco de lápis com que escreve. Ali temos um homem branco, de um país nórdico. Há descrições similares tanto em Carolina quanto em Ega, mas a abordagem dada às obras desses escritores é absolutamente diferente. Você também já deve ter lido Anne Frank, mas pararei por aqui, pois as comparações começam a ficar complicadas… mas o mercado não é fácil.

“O homem ocidental nem sempre se comportou da maneira que estamos acostumados a considerar como típica ou como sinal característico do homem ‘civilizado’”, diz Norbert Elias em “O processo civilizador”. Elias se refere aos “bárbaros homens” de tempos remotos. Mas quando você lê Carolina ou Ega, percebe que o barbarismo corre solto. Nesta semana em que lia Ega, a moça que trabalha aqui uma vez por semana me contava sobre alguns trabalhos que precisa fazer em casas de “patrões”. Era Ega falando.

A tradução de Vinícius Carneiro é muito bem cuidada e ele propôs uma versão para o português que mantém a delicadeza e a profundidade de Ega. O texto dele, feito a quatro mãos com Mathilde Moaty, que serve de posfácio, é uma linda tese, repleta de insights que eu não quis copiar. Trata-se de um livro necessário. Além de sua importância literária, histórica, humana, ele mostra como o mercado absorve muitas pautas feministas e negras do pior modo possível. Mostra também como o próprio mercado editorial lida com essas pautas, publicando autores que reduzem em muito as pautas e a qualidade literária. Afinal, esta coluna é sobre literatura, livros, conteúdos, e preciso dizer isso.


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