Capacidade para lidar com coisas interiores

Em O Mar, John Banville explora um tema espinhoso, mas que nas tintas do escritor transforma o livro num dos grandes romances do primeiro quartel do século

“Alguém acaba de pisar na minha cova. Alguém.”

Podemos nos perguntar qual a razão da literatura após Passeio ao farol ou Mrs. Dalloway. A pergunta é válida, mas ela descortina uma séria de situações. Voltando no tempo, se a situação é a escrita em inglês, qual a razão de se fazer literatura após Dafoe, Swift, Shakespeare? Os romanos já deviam se perguntar qual a razão de escrever após Homero ou Calímaco… e isso, creio, foi feito em seu tempo por Camões e por Borges.

Uma das mais intrigantes e maravilhosas características da literatura é sua capacidade de reinventar-se, mesmo que repita estruturas ou temas. Afinal, temas podem ter o mesmo nome (o amor, a descoberta, a morte), mas cada época construirá sua própria rede discursiva para tratar de um assunto. Sua rede e suas formas, porque a forma também não é fixa como uma cariátide.

Banville tem uma capacidade acima do comum para lidar com coisas interiores. Esse mar que dá título ao livro é tanto o mar exterior, que nos pacifica ou exaure, quanto o mar interior, que tem função semelhante. Aqui, ele coloca frente a frente um homem já no ocaso da vida e o menino que ele foi: o homem descobre a proximidade da morte enquanto o menino as possibilidades da vida. Tema espinhoso e a um passo de se tornar vulgar ou cafona, nas tintas de Banville se transforma num dos grandes romances do primeiro quartel do século.

Para quem se aventurar por ele, vai encontrar descrições de cenas como se descreve uma pintura (o narrador/herói é um crítico ou historiador da Arte, afinal). No entanto, a fatura é tão boa, que se esquece de estar lendo uma narrativa. Ele, Banville, consegue fazer o leitor andar pelos corredores de uma galeria ou museu, um museu da memória do indivíduo, com belezas e crudelidades tratadas com o esmero de uma pintura antiga, a óleo, em camadas.

A tradução mais à mão é de Sérgio Flaksman, pela Biblioteca Azul. Se gostar do estilo do autor, ele tem ao menos três trilogias mundialmente conhecidas. Uma delícia lê-las sem pressa e numa praia.


Aproveito para falar de um texto recente aqui desta coluna, que teve milhares de acessos, o que mostra a paixão por Dostoiévski – e que nada tem a ver com a invasão da Ucrânia. Tenho escrito sobre literatura russa desde muito antes da guerra.

Permitam-me algumas observações:

a) a mim me parece que o professor Boris Schnaiderman não traduziu Crime e Castigo, obra alvo da minha coluna. Ao menos, achei que tivesse em casa todas as traduções do romance em português. Caso tenha me passado tal tradução, peço desculpas por isso. Todos os tradutores do russo que conheço no Brasil são muito gratos, inclusive, ao professor Boris.

b) Usei informações diretas de Ekaterina Volkova Américo, dentre outros pesquisadores, que os colegas que me corrigiram devem conhecer. Isso soou-me de modo muito divertido, pois creio piamente que não a corrigiriam se ela tivesse assinado esta coluna.

c) Tradutores aqui têm lugar cativo e importantíssimo. Luto em todos os meus textos para que os tradutores sejam conhecidos e reconhecidos pelo seu trabalho. Meu respeito por eles é imenso, pois sei o quão complicado é o trabalho do tradutor.

d) Quando escrevo sobre traduções do persa, do coreano ou do suahíli obviamente não tenho tantos amantes desesperados me apontando o dedo. Ou lemos mais autores de outros países ou vemos com menos rigor críticas sobre traduções de Dostoiévski que diferem do lugar-comum e das paixões pessoais.

e) Eu comparei traduções diretas de Crime e Castigo. Com sólidas bases linguísticas cheguei às conclusões a que cheguei. Nada aqui é “eu acho que, mas é minha opinião”.

f) E: a primeira tradução – que foi indireta – de Crime e Castigo chegou ao Brasil apenas em 1949 e foi feita por Rosário Fusco, a partir do francês. Tem graves problemas de “adaptação” ao português, notadamente o português brasileiro. E não poderia ser diferente: como qualquer linguista deve saber, a própria noção de tradução (e, de resto, de variação linguística) é bem diferente nos dias de hoje.

Fiódor Dostoiévski.

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