As doenças do Brasil

“O branco é uma fera que sabe ser silente”

Antes de falar das belezas deste livro, prestes a ser publicado no Brasil (consegui uma edição portuguesa assinada pelo autor, porque ando com essa fantasia), uma observação ou um porém, como queira.

Encontrar no interior da língua algo que identifique uma comunidade, mesmo que literariamente, é para fortes. Muita gente tentou e tenta isso, em várias línguas. Talvez a literatura em si seja uma busca pela linguagem perfeita para a narrativa. Bakhtin, fala, por exemplo da ligação entre o escritor e seu leitor e dessa busca… Mãe fez um romance que é ao mesmo tempo uma busca por uma linguagem com passagens metalinguísticas ou algo assim:

“(…) uma língua era de verdade, como uma lugar onde se ia chegando, e o feio, sem dar conta, abria dentro de si um espaço que até então nunca contemplara.”

Em português, você deve se lembrar do Mário de Andrade de Macunaína. Certamente, aquilo tudo é uma paródia modernista. Mas houve quem tivesse dado outros contornos para a linguagem literária, como Guimarães Rosa. Obviamente, se o leitor imaginar que Rosa estava reconstruindo ipsis literis a linguagem do caboclo, está indo por uma vereda equivocada. Mas há belíssimos textos com uma linguagem particular, própria, que transcende a norma, claro, e que traduz muito bem seu entorno: penso em Graciliano Ramos. Mas tantos autores tentaram isso, de Álvaro Cardoso Gomes, que, em cada capítulo de Os rios inumeráveis, reconstrói uma fase da história (da literatura?) brasileira a autores atuais, como Itamar Vieira Júnior, que acabam dando um tiro no pé, a despeito dos louros todos. Lendo Mãe, você vai encontrar não neologismos mas certos usos verbais incomuns, como encontra em Ondjaki, Mia Couto, Manuel de Barros, entre outros. Manoel de Barros, inclusive, foi um dos autores que o jovem Valter Hugo publicou quando trabalhou numa editora.

Então, talvez você odeie ou ame a linguagem que Mãe escolheu para este seu romance mais recente. De um lado, ele tenta procurar lá no interior da língua que eu citei um modo, uma maneira de escrita, que (re)conduziria o abaeté para um local próprio, específico, dele. Lógico, o leitor sabe que os abaetés não falavam português. Há trechos inteiros – e muito lindos – sobre a conquista da língua do branco. Mas é aí que está o porém. De começo, há um estranhamento, que logo o leitor domina (a linguística e a neurociência podem explicar o porquê) e segue em frente, quase sem tropeços. Esse não é o problema. O problema é a tentativa de encontrar uma língua “própria” para o abaeté, que soa como “impróprio” (o falso trocadilho foi propositado porque tentei imitar o caminho seguido pelo autor). Talvez soe para você, leitor, que a tentativa seja inadequada, pois remete à ideia de que a língua indígena (as línguas indígenas) seja manca.

Então, há esse risco, não desprezível, um risco ao utilizar uma língua estropiada, que é o de fazer imaginar que a língua do índio é menor, menos potente, uma corruptela do português, incapaz, mal-acabada.  O mais curioso – ou triste, em termos literários – é o momento em que o índio domina a (má) língua do branco. Ela se torna límpida, o melhor que Mãe faz, aqui e em outros livros dele: ter um projeto de escrita, uma arquitetura da escrita, como um arquiteto precisa escolher não apenas o estilo de uma construção mas seu todo num terreno específico, respeitando aclives e declives, falhas e rochas.

Há outra situação que talvez ofenda: a mania de olharem para as ex-colônias como continuassem sendo. Alguns críticos se apressaram em apontar como o homem branco foi nocivo para os indígenas das Américas. Olha: o livro não parece discutir isso, ao menos fundamentalmente.

Sempre há um estranhamento quando um autor estrangeiro lida com nossas feridas. Isso ocorreu com Vargas Llosa (Guerra do fim do mundo) e com Sándor Márai (Veredicto em Canudos) quando resolveram escrever sobre Canudos. Trata-se de dois livros extremamente diferentes, claro: o primeiro tem traços de um regionalismo já meio fora da moda e o segundo tem a ver com um livro de memórias europeu. São obras deslocadas. Dialogam e não dialogam com Euclides da Cunha… Falam e não falam do Brasil. O livro de Mãe, idem: embora o nome, os abaetés, o encontro do índio com o negro, a relação com o homem branco, tudo isso, o livro parece falar do Brasil realmente numa outra língua.

Dito isso – e se você passar por isso, afinal em outras obras dele há situações similares, lindamente em umas e não tão lindamente em outras –  você entra na história. Chegando ao segundo terço do livro, a coisa engata e segue o curso quase sem tropeços.

E aí você pode se distrair com as belezas do livro.

Há outros riscos: como o de reescrever a história colocando como heróis aqueles que foram vítimas. Não é verdade tampouco inverdade. Na edição portuguesa alguém comenta que a aventura linguística de Mãe, aqui, é uma “busca da hipótese da paz”. Confesso que li o fim duas vezes para poder concordar com isso para chegar à conclusão de que discordo. Pode soar engraçado aos amantes de um Tarantino a reescrita da história, mas em relação à formação do povo brasileiro soa como ofensivo.

Eu tinha elogiado muito o livro sobre a Islândia, tinha olhado de escanteio para o livro sobre o Japão, li o livro sobre ele e sua mãe crendo que era uma literatura que tentava transformar o banal em soberbo – e isso é bastante irritante, para ser franco – e agora eu li esse livro iluminando todos os outros e me veio uma sensação muito ruim.

Partes altas: a descrição da abaeté, mãe de Honra, pela violência que sofreu, as partes em que Honra “fala” a língua do branco e afaga a cabeça do leitor, voltando à tona o velho Mãe bom de escrita, o encontro de Honra com o pai português.

Reescrever a história pode soar como revanchismo. Expliquemos isso para não soar deselegante. Se algum revanchismo já foi bom na história dos revanchismos, este certamente não é um dos melhores. A história reescrita com mulheres, gays ou negros em lugares que eles não podiam estar pode soar bem para marcação de um território de direitos (essa discussão nunca acabará, tenho certeza), mas em termos de lógica histórica pode ecoar como negativo, fazendo incautos crerem que realmente houve uma preponderância – no caso indígena e negro – no Brasil. O livro chega ao país com vários outros lançamentos que mostram justamente o contrário: que o Brasil é o que é por conta do preconceito racial. Veja-se, por exemplo, Como o racismo criou o Brasil, de Jessé Souza. E chega quando programas de jornalismo mostram indígenas morrendo de malária e desnutrição em pleno território deles, com invasão de garimpeiros. Certamente – e infelizmente – um livro de literatura não tem tanta repercussão na mídia e na historiografia, em geral, mas, para quem gosta de ler, fico a pensar como o livro soará.

Como disse, o livro tem grandes momentos para os amantes de Mãe. Em Portugal, o livro foi publicado pela Porto. No Brasil, pela Biblioteca Azul, da Editora Globo.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima