Ana Paula Maia

Os leitores de seus romances vão perceber que no universo estranho e violento abarcado/construído em sua obra há o que se nos parece “natural”

“Desde que a pandemia se instalou, as estradas estão desertas, assim como ruas, praças e parques.”

Ana Paula Maia.

Já disse por aí que uma das grandes revelações da literatura recente é Ana Paula Maia, e explico a razão.

Essas narrativas da autora carioca não são distopias e estão muito longe, claro, de serem utopias. Eu diria que estão no terreno de uma atopia, no sentido mais banal dado pelos dicionários de grego, “estranheza”, “estranhamento”, “coisa extraordinária, “absurdo”. Não se sabe se as narrativas se passam num futuro, após uma hecatombe, ou após o ritmo natural das coisas atuais mesmo, ou se se passam num passado (não muito distante) após uma mesma hecatombe. Espero que alunos e professores dedicados se debrucem sobre essa questão. Como ela transita entre passado (óbvio, pois as narrativas são escritas com tempos verbais no passado e, quando muito, no presente) e o futuro (possível), costumo dizer que sua escrita é um tipo de “pretérito do futuro”.

Outro modo de ver sua obra é pensar em heterotopias, no sentido proposto por Foucault, em O Corpo Utópico, as Heterotopias. Diria mesmo (sempre que leio Ana Paula Maia penso nisso) que ela parece uma leitura de Foucault, notadamente quando constrói seus universos heterotópicos, repletos de monstruosidades, o que por si só já remete ao “monstro” foucaultiano (um dos ancestrais genealógicos do anormal) e à teratologia do saber (um conjunto de conhecimentos, saberes e práticas não adotado pela academia): os sentidos são distintos aí nesses termos e os leitores mais próximos da obra de Foucault vão entender bem a distinção.

Creio, então, que pensar em atopias e heterotopias seja um caminho instigante para tentar chaves de interpretação para os textos da autora.

Até aí, razoavelmente num caminho possível. Mas os leitores de seus romances vão perceber que no universo estranho e violento abarcado/construído em sua obra (são oito romances até o momento) há o que se nos parece “natural”, porque próximo. Natural no sentido de fazer parte de uma estrutura social que vivemos de perto. Não estamos tão distantes da violência descrita por ela, afinal, e talvez isso seja uma das características mais alarmantes de sua escrita.

Daí, surge Jeffrey Jerome Cohen com suas sete teses em Monster Culture: cada época engendra seus próprios monstros; esse(s) monstro(s) sempre escapam; porque não cabem em nenhuma taxonomia (nem Plínio, Agostinho ou Isidoro podem taxonomizá-los); o monstro é uma construção dialética feita a partir do outro; o monstro está nos limites do possível; o monstro é um tipo/modo/construção do desejo, um desejo de “solução”; os monstros são nossas “crianças”, que voltam.

As personagens de Ana Paula Maia são, nesse sentido proposto por Cohen, nossa construção mental ambígua, entre nossos medos e nossos desejos de solução para eles, são a manifestação literária (e discursiva) do que temos sentido, nesse momento aí de arminhas, piadinhas misóginas e homofóbicas, de agrotóxicos, de desmatamento, de morte a indígenas e quilombolas, de cocaína em aviões presidenciais, do Brasil fora do Brics, de desmonte do (pouco) que construímos de positivo nas últimas décadas.

“Quando partiam para a guerra, os soldados repartiam as sobras da batalha, os bens conquistados com a vitória sobre o adversário. Eram os espólios de guerra. Fosse ouro, fossem armas. Até mesmo mulheres e gado.”

Nossos Bosis, Coutinhos e Cândidos do futuro dirão que essa fase neofascista do primeiro quartel do século XXI privilegiava uma literatura ligeira em que qualquer ação cotidiana era o bastante para se fazer literatura. Farão uma diferença entre “qualquer ação do cotidiano” comparando as obras atuais com as de Clarice Lispector, cujas obras podiam carregar, de fato, situações cotidianas que provocavam catarses e epifanias. Eles dirão que o mercado editorial teria optado por obras pequenas, de fácil leitura, com poucas páginas e muitos prêmios literários, alguns intercontinentais. Dirão também que tal literatura terá sido fruto do seu tempo, em que teóricos cunharam termos como “mundo líquido”, “hipermodernidade” e outros termos em que o prefixo “pós” funciona para tudo. O o prefixo “des” ou o prefixo “eco”.

Desses autores, espero que sobrem Ana Paula Maia, Victor Heringer, Contreras. Maia tem uma incrível capacidade de apertar num livrinho de cem páginas um thriller cinematográfico como se fizesse mesmo um roteiro para cinema ou série. Geralmente delimita suas personagens num universo perverso e duro, violento e sem piedade, em que a ordem e a lei estão subvertidas (bem, e onde não estão, né?). Márcia Tiburi lembra de Kafka, ao analisar a obra de Maia, mas não é o caminho para ler Maia. “Assim na terra como embaixo da terra”, por exemplo, está mais para as distopias da moda — mas a autora faz isso muito bem. Tiburi também lembra que o livro é “uma alegoria perfeita para o estado de exceção” e aí sim fica difícil discordar dela. Estamos caminhando para isso e não é de se admirar que os discursos sobre a violência, a justiça esquecida pela lei, o estado heteronormativo, misógino, preconceituoso, etc., atravessem as obras de Ana Paula Maia.

Pode ser que a estrutura que lembra um roteiro e as finalizações típicas do cinema (notadamente o americano) irritem algum leitor mais exigente, mas a capacidade de Maia de escrever um romance que “pára em pé” é notória.

A publicação mais recente dela é De Cada Quinhentos uma Alma. Nesse romance bem sucinto e objetivo, a autora retoma o que até agora tem sido uma obsessão, de grandes frutos: um universo masculino e atormentado, em que as personagens lutam para sobreviver.

A autora foi roteirista da excelente série Desalma. Após ver a série, você poderá fazer algumas pontes bem interessantes sobre o processo criativo dela.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Mentiras sinceras me interessam

Às vezes a mentira, ao menos, demonstra algum nível de constrangimento, algum nível de percepção de erro. Mas quando a verdade cruel é dita sem rodeios, o verniz civilizatório se perde

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima