A Resistência, de Julián Fuks

Todo sujeito é um processo em andamento

Em sentido restrito, “resistir” é manter-se contrário a algo. Em verdade, a palavra migrou de “permanecer em pé”, provavelmente “firme” (“parar, fazer frente”, em Antenor Nascentes), para o sentido que entendemos hoje: “resistir” a algo, opor-se a algo, barrar algo. Não em vão a palavra migrou para um substantivo (ou terá sido o contrário) e dá nome a um componente eletrônico, o resistor, um elemento que “resiste” à passagem da corrente. A resistência elétrica, representada pela unidade de medida Ohm (cujo símbolo é a letra grega ômega) permite calcular grandezas, como a tensão e a corrente. Quando maior a resistência, menor a corrente. A relação é direta. R = V/I. Gosto dessa fantasia de colocar o nome de um sujeito como grandeza ou como medida para coisas inanimadas. É nosso maior sonho, o de que as coisas funcionem/funcionassem assim: de forma direta.

Há muitos sentidos para “resistência” e o “resistir”. E há muitos graus e modos de fazermos resistência a algo, de resistir a algo, assim como o resistor: quanto mais unidades de medida em Ohm, mais será resistente. Ocorre que nossa vida não tem essa relação inversa ou direta de algo físico, pois nossa relação com o outro e conosco mesmos tem mediação, seja a memória, a interpretação, o tempo/história, ou seja, uma linguagem.

Nossa variação de resistência, portanto, nosso poder de resistir, nossa capacidade é volátil, volúvel, inconstante, está à mercê das contingências e, diante disso, a ideia de livre arbítrio acaba caindo por terra. Como “resistir” a um trem carregado minérios, correndo a tantos km/h, com sua massa gigantesca? Como “resistir” a um avião que cai? Como resistir a um regime totalitário e sanguinário, à grande rede de práticas que mata centenas de milhares? [Há como…] Como “resistir” ao tempo, à velhice, ao fluxo do rio, às marés, ao desejo intocável da música das esferas? Como resistir ao óbvio, àquilo que nos foi dado, ao dado dado (uso aqui o famoso raciocínio do professor Sírio Possenti), ou seja, àquilo que foi jogado à mesa de nossa vida antes mesmo de nascermos?

Talvez por isso recorramos à investigação: do passado, da vida familiar, do fremente e pulsante mundo à nossa volta. Assim, fotos e ditados e piadas e narrativas e medos e objetos e cheiros serão nossos dados dados, jogados à nossa mesa de feltro verde, sem os quais não somos nada.

Há quem procure nas estrelas ou nas vísceras dos animais uma explicação. Há quem procure na psicanálise, na religião, na literatura (?), na caminhada, na filosofia… Talvez por isso pensadores tão distintos ou tão semelhantes quanto Derrida e Lacan terão pensado: eu sou assim, “isso” é o que me foi dado. Assim, e do mesmo modo, Joseph Campbell resgatará um célebre ensinamento brâmane: “tat tivam isi” (tu és isso) e não seria absurdo pensarmos que a tradição mais próxima a nós, a que nos moldou, ordena ou sugere ou adverte ou admoesta: “conhece-te a ti mesmo”.

Mas a construção do discurso é uma interpretação do mundo e das coisas – e a verdade, ah, a verdade, é uma construção também, mediada por palavras, como eu disse.

Há muitos sentidos do resistir nesse belo livro de Fuks. Como se sabe de antemão que se trata de um livro sobre uma criança adotada em pleno regime militar argentino, ou seja, não adianto nada ao leitor, a primeira ideia que se pode ter é a da resistência política. E ela, de fato, existe. No entanto, ela se dilui ao longo do tempo, até se tornar quase vaga, difícil de pautar – e a criança adotada é um problema em si, em si mesma também, para além e aquém de qualquer regime. Paira uma dúvida se a criança teria sido filha de uma mulher assassinada ou, numa coincidência história, filha de uma mulher que não fazia parte das lutas contra o governo GENOCIDA. E há outras resistências: a ter filhos (o pai do narrador “resistia” a essa ideia), à comida (o irmão é descrito muitas vezes como aquela que não come, citando-se como paralelo aquele artista da fome kafkiano), à verdade, à memória, ao passado etc.

Grande parte da grandeza do livro está no fato de que Fuks foge do lugar-comum e do óbvio, que é a tentativa de uma história linear. A memória não é linear, afinal. Aliás, a memória pode mesmo ser uma criação do hoje em relação ao ontem. Não sem razão, os pais do narrador duvidam de algumas memórias porque cada um constrói as suas, assim como cada um faz leituras dos dados dados. Os pais são personagens ficcionais, afinal, mas ao fim do livro eles são posicionados como testemunhas oculares.

O leitor, então, terá de juntar os cacos, os pedaços, o vai e vem da memória do narrador. Ao fim e ao cabo, a tarefa nem é tão complexa assim e o livro corre rápido porque a escrita é muito agradável. Faz lembrar autores que se preocuparam com uma escrita elegante para contar coisas por vezes bem apreciadas na literatura, mas nunca esgotáveis. Pensei em muitos autores que li ao longo de quase meio século, mas deixarei a surpresa para quem ainda não o leu.

Não sei o que fazer depois da morte

Não costumo falar de dois livros juntos, mas A Ocupação é quase uma sequência para A Resistência. Poderíamos pensar que, embora Sebastián seja outra pessoa, o pai seja outra pessoa, a família seja outra família, há mais que coincidências entre um e outro. Funcionam como um díptico – e dão abertura para continuidades, trípticos e painéis. Da mesma forma que em A resistência, em A Ocupação a palavra ganha múltiplos sentidos e ambas juntas (resistência/ocupação) têm uma sinonímia muito interessante. Há no livro mais recente a mesma preocupação e o cuidado com a linguagem, algo um tanto raro na produção recente em língua portuguesa. Essa preocupação com a linguagem remete a autores de outras tradições, como disse acima, e a conversa é boa.

Porém, há algo que incomoda um tanto mais no segundo livro que no primeiro, a despeito da linguagem elaborada e a despeito de a literatura ter rompido já há tanto tempo com formatos fechados para a escrita ficcional. Nada contra juntar cacos para montar algo. Isso realmente não é problema. Por vezes, podemos nos perguntar onde vai dar tudo isso. Tanto um livro quanto o outro são vendidos como “ficção contemporânea” para fugir da nomenclatura fechada  (romance, memória, contos etc.). de todo modo, o leitor vai encontrar em ambos os livros pedaços, observações esparsas, numa narrativa que beira o ensaio.

Uma carta de Mia Couto – real ou fictícia – acrescentada ao segundo livro ilumina bastante a narrativa. Eu comecei por ela, inclusive, e isso me ajudou bastante.

Em A Resistência, temos como enfoque um irmão e esse tema (o do irmão) é bem conhecido no mito, na literatura, na psicanálise, enfim, nas pesquisas antropológicas. Já no segundo, o tema se dilui um pouco, mas eu colocaria o pai em primeiro plano.

Duas obras para ler com prazer, e para conhecer um pouco mais da nova literatura brasileira, afinal “resistir” e “ocupar” tem se mostrado um imperativo.


Para ir além

Ler Carolina Maria de Jesus é fundamental

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