Cuidar da sua rua é o melhor jeito de cuidar do mundo

Moradores do Vista Alegre dão exemplo ao se unirem para transformar sua rua

Mais de duzentos anos atrás, Voltaire escreveu uma frase que era provocação a muitos de seus colegas filósofos, empenhados em fazer grandes sistemas para questões metafísicas. O personagem de seu livro Cândido apanha da vida por acreditar em teorias filosóficas absurdas. No final, acaba decidindo que mais importante do que tudo aquilo que ele aprendeu, do que todos os modelos que tentavam mudar o mundo de um só golpe, era cuidar do seu jardim.

Claro que era uma metáfora: mas o importante estava de fato muito perto. Era preciso cuidar do jardim, mas também do quintal, da casa, da rua… O mesmo Voltaire disse que nenhum filósofo moral, desde a Antiguidade, tinha conseguido melhorar a ética nem mesmo dos seus vizinhos… O que resta?

Para muita gente, o que importa é cuidar de nossa vida interior – e isso está presente no crescimento de adeptos de práticas como a ioga, a meditação e, claro, sempre esteve presente nas religiões tradicionais. Mas o entorno também é cada vez mais importante. Se sozinhos não podemos resolver o problema do narcotráfico internacional, por que pelo menos não limpar a praça do bairro?

Em Curitiba, há uma rua que se tornou exemplo desse tipo de cuidado. O início veio com uma crise. Tudo começou com o assalto na casa de Tereza de Leon, em 2016. “Ficamos todos com medo e decidimos nos unir para evitar novos crimes. Criamos um grupo da rua, colocamos placas e câmeras de segurança e passamos a nos conhecer melhor. Formamos uma verdadeira comunidade”, conta Tereza, moradora da rua Chafic Curi, no bairro Vista Alegre, em Curitiba.

Desde então, a comunidade de vizinhos se reúne, em festas, pelo menos cinco vezes por ano (em 2020 elas foram suspensas por causa da pandemia). Nestes quatro anos, foram formadas novas amizades, nenhum outro assalto ocorreu na vizinhança e nasceu uma encantadora iniciativa visual, ecológica e social. É ela quem vem despertando olhares e boas sensações em quem mora ou passa pela região.

Tudo é feito de material reutilizável. Foto: Mauren Luc

A rua encantadora

A identificação da rua, que entrou na campanha do Outono Rosa. Foto: Mauren Luc

Na rua Chafic Curi há trabalhos artesanais de motivação e de preservação ao Meio Ambiente. Uma ação individual que propicia ações cidadãs coletivas. “Estes dias, o vizinho me procurou perguntando como podia ajudar a deixar a rua mais bonita. Eu dei dois azulejos pra ele e pedi que fizesse algo. Ele voltou com placas lindas, com frases motivacionais e decoradas. Contou que fez com as filhas. É esse o espírito, unir as famílias para deixar nosso lar ainda mais agradável e com esta energia contagiante.”

Quem conta é o principal responsável pela decoração da quadra. Célio Gonzaga Ross tem 57 anos e é recém-aposentado. Capitão do exército, ele encontrou no artesanato de materiais recicláveis uma forma de “ocupar o tempo livre e fazer algo útil para a comunidade”.

Nada se perde. Foto: Mauren Luc

Além de incentivar a separação do material reciclável, Gonzaga lembra que chega gente de todo lado querendo ajudar. “Vi um senhor que não conheço varrendo a rua estes dias. Perguntei se era morador novo e ele explicou que não, que passa sempre aqui e que faz tão bem pra ele passar por este espaço que decidiu ajudar. Agora vem com o filho, vem de carro, estaciona, desce com vassoura e pá, varre e leva o lixo embora.”

Em outra tarde, ao chegar em casa, Gonzaga viu uma moça e uma criança tirando os matos ao lado do balanço. Também não eram moradoras da rua. “Ela me contou algo muito emocionante, disse que estes dias, enquanto vagava pela região, pensando em se matar, entrou na nossa rua e começou a ler as frases. Foi quando lembrou o quanto a vida é bonita e desistiu de fazer besteira. Disse que isso mudou a vida dela e que agora vem sempre aqui com a filha e quer ajudar.”

Espaço para as crianças. Foto: Mauren Luc

Do outro lado da rua, uma criança se balança no espaço criado pelo morador. “Aqui tem um ar diferente. Eu chamo de Praça dos Vagalumes porque toda noite eles estão por aqui”, diz Laura de Macedo, de oito anos. A mãe varre enquanto ela brinca. A vassoura é deixada por lá pelos vizinhos, ao lado da lixeira. “Aqui é um paraíso, um cantinho que viemos para refletir e relaxar. Gostamos de vir aqui, então nada mais justo do que ajudar, colaborando na limpeza”, explica Elis Rodrigues de Macedo.

Pode passear consciente com o cãozinho. Foto: Mauren Luc

Parece que até os vândalos sentem algo diferente na rua Chafic Curi. “Olha, raramente acontece de quebrarem galhos ou levaram plantas. Uma vez levaram o violão da decoração. Dois meses depois, vieram e colocaram no mesmo local de onde roubaram”, conta o ex-capitão.

Dá para emprestar livros. Foto: Mauren Luc

Gonzaga diz que há um “jardim secreto” sendo preparado nas redondezas, mas só para depois da pandemia. Ele já tem mais um ajudante, o vizinho Moacyr Fachinello, também recém-aposentado e morador da rua há 24 anos. “O Gonzaga é o cara das ideias, iniciativas, que tem as ferramentas e o conhecimento. Eu sou o aprendiz de Gonzaga”, assume Fachinello.

Tudo é feito artesanalmente. Foto: Mauren Luc

“Fazer e ver coisas belas, ler palavras de incentivo, mensagens positivas, ter um lugar gostoso pra sentar, ouvir os pássaros, ver a natureza, isso muda teu pensamento, traz bem-estar, é contagiante”, avalia o morador e psicólogo Carlos Petruy. “O Gonzaga criou toda uma rede de apoio nesta rua, que faz a coisa funcionar, aumenta a qualidade e traz mais prazer à vida.”

Frases que motivam… Foto: Mauren Luc
E que fazem pensar…. Foto: Mauren Luc

Tendência mundial

Cuidar da própria rua, da praça, do bairro é algo mais comum em países desenvolvidos, conta o professor da PUCPR, Denis Alcides Rezende, especializado em estratégias para cidades. “Eu morei um tempo em Chicago, e lá é muito comum o pessoal cuidar do lago, que eles chamam de praia. Aqui já vejo começar a acontecer”, diz ele.

Rezende percebe que ainda existe o costume de acreditar que cuidar da cidade é uma responsabilidade que cabe unicamente ao poder público. Se existe um problema, a tendência é reclamar do prefeito – o que também faz sentido, claro. Mas se apropriar da rua e fazer com que a comunidade tome conta é uma saída ainda melhor.

“Às vezes, não começa nem com a rua. É com uma casa, depois duas, um prédio, e vai se espalhando. As pessoas deixam de se ver como simplesmente habitantes de um mesmo local e se enxergam como parceiras.”

Rezende acredita que a pandemia acabará fazendo com que os brasileiros se aproximem dessa tendência. “Como sempre acontece na história da humanidade, nós aprendemos nos momentos de dor. E agora estamos mais em casa, vivendo nossas ruas, nossos bairros; essa sensação de comunidade certamente vai crescer.”

Cuide! Foto: Mauren Luc
Use máscara! O cuidado está também na natureza. Foto: Mauren Luc

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