Já fui um Autor, um dia.
Agora sou apenas um texto,
um fragmento anônimo, palimpsesto,
cadáver esquisito e indigesto.
Tive que matar quem me pariu
pra que você, Leitor, nascesse,
no meio desse diário massacre,
em pleno abril, e no Brasil.
Não existe mais eu, nem outro.
No lugar onde estava o Autor
um discurso sem vida, neutro,
uma ausência singular, meu amor,
este zumbi chamado Eutro.
Tive que matar minha mãe, meu pai,
depois tive que me matar.
Não adianta ocultar nosso ardil:
eu sou uma cena de crime.
Assassinar o Autor até foi fácil:
na calada da noite, uma cilada.
Agora temos um problema:
quem vai assinar este poema?
Não há como você se deslocar
sem deixar sinais de sua presença.
Todo contato deixa um vestígio
segundo o princípio de Locard.
Não me subestime.
Você conhece meu prestígio.
Tenho em mim seus fios
de cabelo,
sua saliva, as pegadas
do seu tênis, suas impressões
digitais, seu sêmen.
Você levou ou trouxe,
durante o crime,
alguma coisa de mim.
Se foi fácil matar aquele gênio?
Se foi simples montar aquela farsa?
Não seja ingênuo, comparsa.
Essas letras espalhadas,
espirradas pelas paredes,
o sangue negro viscoso e essas manchas
no chão desta sala terrivelmente branca,
provam que a coisa foi feia e bruta.
E houve luta.
O que faz de você (e é tão simples
o que estou tentando te dizer)
no mínimo meu cúmplice.
Nem venha com mumunhas,
armações, venenos, mutretas.
Você foi coautor, no mínimo testemunha.
Isto está escrito com todas as letras.
Agora só espero, em silêncio,
que a polícia nos intime.
A morte do Autor, ainda vivo,
é a forma mais eficaz e moderna
de queima de arquivo.
***
De O Enigma das Ondas (Iluminuras, 2020, 152 páginas).
Sobre o/a autor/a
Rodrigo Garcia Lopes
É escritor, tradutor e compositor. Nascido em Londrina (PR), publicou 18 livros de prosa e poesia, incluindo “O Enigma das Ondas” (Iluminuras, 2020).