O horror indescritível de Svetlana

Por meio de relatos, a ganhadora do Prêmio Nobel de 2015 expõe a tragédia que foi o acidente de Chernobyl

Não há palavras para descrever os sentimentos e sensações causados em mim ao ler Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch. 

Ler sobre o acidente de Chernobyl, que ocorreu em 1986 – quando a União Soviética ainda existia – enquanto a Rússia invade a Ucrânia é ainda mais aterrador.

Guerra é sempre, indiscutivelmente, o pior cenário. É o horror. Putin ou Zelenski, Biden ou Xi Jinping, Rússia ou Otan, não importa: o povo é quem sofre. Sempre. Em Chernobyl não foi diferente. Mesmo não tendo sido uma guerra, os entrevistados pela autora se referem ao episódio como “guerra”.

Os relatos vão de professores a mães, de camponeses a soldados, de idosos a jovens, colhidos cerca de dez anos depois do acidente por Svetlana, jornalista e escritora ucraniana. 

Como a desinformação causou a destruição de milhares de vidas!

“Não sei do que falar… Da morte ou do amor? Ou é a mesma coisa? Do quê?”

O primeiro relato do livro é da esposa de um bombeiro. É de chorar, de tão doído. Ele morreu logo depois, se desfazendo, literalmente falando, num hospital em Moscou. Ela, grávida, contaminada pela radiação do marido – de quem ela cuidou clandestinamente no hospital – não morreu. O bebê absorveu toda a radiação. No fígado havia 28 roentgen, disseram-lhe quando Natalia nasceu, para morrer em seguida.

Quem assistiu a série da HBO, de 2019, sobre Chernobyl, conhece a personagem.

“Quando ela nasceu, não era uma criança, era um saquinho vivo, costurado por todos os lados, não tinha uma fenda sequer, só os olhos abertos (….) Na linguagem popular é sem xaninha, sem fiofó, um rim só (…) Em quatro anos, já fez quatro cirurgias (…)  Eu não posso mais parir. Não me atrevo.”

Relato de outra mãe. O que dizer sobre isso? Só mesmo silenciando.

“A minha primeira viagem à zona. A caminho, eu pensava que encontraria tudo coberto de cinza, de fuligem negra. (…) Mas lá, você chega e… que beleza! Os prados floridos, o delicado verdor dos bosques na primavera. (…) mas o que mais me assombrou foi a combinação de beleza e medo (…) uma estranha sensação de morte.” 

Relato de um pesquisador acadêmico de quando foi a Chernobyl. Foi convidado a almoçar na casa de uma diretora de escola. O dosímetro marcava alta radiação. Mas a família não acreditava. 

Sim, os bosques continuaram verdes, as hortas produziam como nunca, vacas davam leite. Mas os camponeses não acreditavam. Comiam e bebiam. 

Saqueadores e ladrões pilhavam as casas e lojas que tinham sido lacradas. Camponeses, expulsos de suas terras, voltavam escondidos. Sobreviviam como sempre viveram. Plantando. Repolhos, batatas, tomates, pepinos. Toda essa gente viria a morrer, mais cedo ou mais tarde.

Svetlana reportou o sentimento da antiga URRS. Uma cultura que uniu povos diferentes. 

“Primeiro, o sentimento do dever. Segundo, o amor à pátria. (…) Não conseguíamos enterrar tudo. Enterrávamos a terra na terra com besouros, aranhas, larvas. Com todos esses diferentes povos.” Relato de um “liquidador” . 

Continuo não tendo palavras, e com certeza nunca vou achá-las. Leiam, por favor, este livro.

Filmes

A Promessa, HBO. Siroun, sul da Turquia, 1914. O Império Otomano estava prestes a desmoronar. O longa fala sobre o massacre dos armênios pela Turquia, com um romance como pano de fundo.

Hotel Rwanda, com Don Cheadle e Joaquin Phoenix, Amazon Prime. Quase um milhão de pessoas morreram num conflito entre tsusis e hutus em 1994, conhecido como Genocídio de Rwanda.

Chernobyl, série de 2019 sobre o acidente, HBO.

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