A autoficção de Carson McCullers

Viveu pouco, mas sua escrita marcou várias gerações

Volto a falar de Carson McCullers, autora estadunidense de poucas obras traduzidas no Brasil. “A Convidada do Casamento” foi publicado em 1946, apenas 21 anos antes da morte de Carson, nascida em 1917. Viveu pouco, mas sua escrita marcou várias gerações. Escreveu sobre negros, judeus, gente esquisita, gente solitária, gente desconectada com o establishment.

Reli uma edição de 2008, da Novo Século, enquanto faço um curso com Natalia Timerman, autora de “Copo Vazio” – tema de uma coluna aqui mesmo. Não por acaso, Natalia falava de autoficção. Na minha opinião, Carson escreve autoficção, pois a personagem principal desse livro é claramente inspirada nela mesma quando criança/adolescente: Frankie, uma garota de doze anos que se veste como um menino (tomboy) e, nessa idade, se sente deslocada de tudo e de todos. Assim como Carson, que foi uma menina solitária e se vestia como homem.

Tudo se passa num verão, no Sul dos EUA. Frankie – Frances Addams – tem um irmão mais velho, Jarvis, que mora em outra cidade e vai se casar. Ele é objeto de verdadeira adoração da garota, que vive com o pai – relojoeiro, como o pai de Carson. A mãe de Frankie morreu no parto. Suas companhias são Berenice Sadie Brown, a cozinheira negra, e John Henry, primo de seis anos que sempre está na casa.

E a cozinha é onde se desenrola a maior parte da história. 

Eram quatro horas da tarde e a cozinha estava quadrada, cinzenta e tranquila. (Notem que o cômodo não ERA quadrado nem cinza; ESTAVA. Pois tudo é narrado pelo ponto de vista de Frankie). Toda tarde, o mundo parecia morrer, nada mais se movia. Finalmente, o verão tornou-se um verde sonho doente, ou uma louca floresta silenciosa, debaixo de um vidro.

Mesmo antes de reler a obra, nunca me saiu da memória aquela cozinha, o quintal, o verde escuro da ravina, as ruas silenciosas debaixo de um sol quente. 

O céu do entardecer estava pálido e vazio e a luz que saía da cozinha fazia um reflexo quadrado e amarelo no quintal escuro. (Eu vejo a casa, os degraus que dão para a cozinha, Berenice e Frankie com uma clareza, quase sobrenatural). Depois do quintal escuro, a cozinha estava quente, iluminada e esquisita.

Carson repetidamente diz que Frankie “sente medo” naquele verão. Medo de se tornar moça, mulher. Medo da paixão que Berenice acha que ela tem pelo casamento, pelo irmão. Medo de morar numa cidade pequena onde tudo e todos são conhecidos, como se fosse um roteiro já aprovado para a vida que ela teria. Uma soma de medos e confusão.

Na segunda parte do livro, a garota se autointitula F. Jasmine, sendo este o segundo nome de Frances. Ela está decidida a deixar a cidade e viajar com o irmão e a esposa, logo depois do casamento. A decisão “adulta”, de certa forma, a deixa confortável e confiante (um pouco demais, sem dar spoiler). 

Foi Berenice quem finalmente suspirou e começou a concluir aquela última e estranha conversa. – Acho que tenho uma vaga ideia onde você quer chegar. (…) Todos nós estamos presos, de certa forma. Nascemos dessa ou daquela maneira e não sabemos porquê. Nasci Berenice. Você nasceu Frankie. (…) Cada um de nós tá preso dentro dele mesmo. (…) Minha prisão é pior que a sua. (…) Porque sou negra.

Berenice foi casada três vezes, e a forma como Carson/Frankie narra as tragédias da vida da cozinheira – inclusive pelas palavras da própria Berenice – são inesquecíveis. Fortes palavas, mas sem nenhum drama ou pieguice.

No outono, tudo muda na vida de Frankie. 

(…) Frankie jamais acreditara seriamente, nem por um minuto, que ele pudesse morrer. Era a dourada estação das margaridas e borboletas. O ar estava frio e dias a fio o céu conservava um claro verde-azulado, mas cheio de luz, a cor de uma onda rasa. Frankie nunca teve permissão para visitar John Henry, mas Berenice ajudou diariamente a enfermeira.

Mas não só uma morte apareceu. Outras coisas surgiram para Frances Jasmine Addams. 

Ela não mudou de cidade, mas no final Carson já enseja o futuro dela – e de si mesma. Carson se mudou para Nova York com 17 anos e publicou seu primeiro livro com 23 anos, “O Coração é um Caçador Solitário”, depois de ter se casado com Reeves McCullers. Este livro foi traduzido no Brasil e também é imperdível.

Sobre o/a autor/a

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