Um homem (despido) na multidão

É possível que você também ache que a Paris de Renoir no século XIX era o próprio retrato do bar da esquina sendo autuado pela Vigilância Sanitária. Dá até aquela saudade de sentar no restaurante com os cotovelos na mesa, né?

Dia desses, tendo minha saída de casa para buscar livros devidamente avaliada, autorizada e testemunhada por quatro crianças, dois gatos e um adulto vigilante, após descer sete andares em um elevador potencialmente contaminado e dar bom dia ao porteiro, sinto enfim o calor do sol e o vento acariciarem suavemente o meu rosto. Sinto também um frio na espinha e vergonha intensa. Toco bochechas e nariz. Como assim? Saí sem máscara.

Já faz um tempinho que me dei conta desse novo tipo de pudor: o do rosto despido. Esse rosto nu que não é apenas politicamente condenável mas também potencialmente letal, pornográfico, depravado, saindo assim, no meio da rua. Está decretado: toda nudez facial na multidão será castigada. Aliás, que multidão?

Estudando pinturas outrora modernas, dou aquela espiada marota nos primórdios das aglomerações urbanas.

(Pausa na leitura para dar um Google lá no Realismo e no Impressionismo. Digita lá “Gustave Courbet” e “Pierre-Auguste Renoir ” e vai deslizando os dedos na tela até achar uma imagem que te interesse)

É possível que você também ache que a Paris de Renoir no século XIX era o próprio retrato do bar da esquina sendo autuado pela Vigilância Sanitária. Dá até aquela saudade de sentar no restaurante com os cotovelos na mesa, né? E também faz pensar que não podemos mais nos perder na multidão. Sintomas claros de síndrome da nostalgia da aglomeração idealizada. Mas, veja só, podemos olhar para essas imagens e pensar em como era quando podíamos ser apenas modernos (antes de ficar chato, como bem disse Drummond, e depois de constatarmos que não somos eternos).

O Baile no Moulin de la Galette (1876), de Pierre-Auguste Renoir. Crédito da imagem: reprodução.

A Origem do Mundo já não era mais divina, gritava Courbet com sua tela escancarada. Achou ousado? E pensar que hoje temos que borrar as pontas dos mamilos nas redes sociais… Ainda que o quadro nos mostre uma vulva explicitamente aberta, suspeito que a obra de Courbet não tivesse vocação estritamente pornográfica. Sua maior ousadia talvez pousasse sobre o título. Sim, se Courbet a tivesse chamado de “Vênus”, ainda que uma Vênus muito menos depilada que o usual nas pinturas renascentistas, causaria menos furor. A bomba é lançada quando o artista sugere que a origem do mundo é biológica e, portanto, científica, desprendida de um Criador (lembra daquele filósofo que saiu por aí, mais ou menos na mesma época, dizendo que Deus estava morto? Lembra daquela outra teoria, da evolução das espécies, pois é, bem-vindo ao século XIX). A origem do mundo, o quadro aponta, é também necessariamente humana, pois apenas o humano é capaz de significar o mundo ao seu redor. O corpo do mundo, no corpo do humano, no corpo da imagem. Mas por que uma mulher? Ora, não se diz língua materna? Quem seria a primeira a nomear e simbolizar o mundo, senão a figura da mãe? A origem do mundo não é a vulva, é a língua. Está feito o convite.

O Realismo de Courbet não transgredia só as leis divinas, mas também os cânones da representação do instante. O que antes alcançava o auge na pintura concentrando a narrativa em sua forma pregnante (as grandes batalhas históricas, os temas religiosos, a mitologia) agora era valorizado em sua versão qualquer. O lapso, o momento de devaneio, os rastros de um movimento, o descanso da bailarina que alonga os pés, tudo o que era fugaz passou a ter importância suficiente para ser plasmado na imagem. O homem moderno podia então assistir a si mesmo existir em toda sua fugacidade na pintura, na fotografia, e logo, no cinema (estou falando homem porque naquela época era o homem mesmo o espectador ideal, ok, amigues? Onde estavam as mulheres? Deixo pra vocês imaginarem).

A Fiandeira Adormecida (1853), de Gustave Courbet. Crédito da imagem: reprodução.

Mas esse ser maravilhado com as novas velocidades, que aprecia a efemeridade do instante, também era uma figura meio mitológica, que não se via muito por aí nem no século XIX. Para ilustrar, proponho o seguinte: acrescente ao canto inferior dos quadros impressionistas a figura do coelhinho da Alice no País das Maravilhas” correndo com o relógio nas mãos. Concorda que contemplar os “Nenúfares” de Monet não combina muito com a pressa para pegar o próximo trem na estação? Acho que até dá pra entender por que na época um crítico escreveu que um “Papel de parede em seu estado embrionário é mais bem-acabado” que um quadro Impressionista.

Alguns dos 250 Nenúfares (1914-1926), de Claude Monet, no Musée de l’Orangerie em Paris. Crédito da imagem: reprodução.

A gente aprende, quando estuda arte, que os impressionistas queriam capturar a efemeridade da luz. Aprende também um pouco sobre a teoria das cores. Talvez, espremendo um pouco os olhos nos livros ou, quando possível, nos museus, a gente aprenda também a misturar as tintas mentalmente para formar a imagem. Mas isso só explica o como e o que eles pintavam, não para quem. Enquanto o Impressionismo nos carrega os olhos com suas tintas industriais acomodadas em maletas e cavaletes portáteis e nos leva para tomar um ar e ver a luz do sol, bochechas nuas ao vento, o que querem de nós, usuários em questão?

Pouco importa se somos colocados diante de um nascer do sol, de uma ponte ou de uma mulher com uma sombrinha. O que eles nos demandam é justamente o que o homem moderno jamais teve: tempo. Tempo para andar três metros para trás e sentir a paisagem se remontar diante dos olhos. Tempo para ligar os pontos, literalmente, para descobrir que as sombras têm cores, para perceber o azul e o verde no brilho dos cabelos negros da menina. Leva tempo para ver uma galinha surgir de três pinceladas. É preciso estar presente para gestar aquela terceira cor dentro do nosso corpo, para parir o mundo em todo o seu significado.

A Leitura (1888), de Berthe Morisot. Crédito da imagem: reprodução.

Não são imagens para nos dizer coisas ou contar histórias sobre um passado trágico ou um futuro glorioso, mas para nos prender ali, bem diante do tempo perdido. Aprendemos com Renoir a dançar sobre bitucas de cigarros, a vaguear pelos olhares dispersos dos barqueiros sem nunca adivinhar ao certo o que cada um deles está planejando para depois do almoço. Qual será o próximo passo? O próximo movimento depois da pausa naquela dança?

E eis que dos mesmos cafés que abrigaram esse impressionismo recém-nascido, numa passada vagarosa, surge a figura do flanêur: um burguês que tem o tempo à sua disposição e que pode dar-se ao luxo de desperdiçá-lo, para horror da sociedade capitalista. Um marginal, um voyeur da multidão, isolado daqueles que observa. Ao errar entre as galerias e bulevares, ao passear pelos mercados, o flanêur é o ser que vê o mundo sem a pretensão de explicar, mas com a intenção de mostrar. Nas ruas das metrópoles, ele vê o homem moderno sendo, sem precisar sê-lo: um prisioneiro do sistema industrial, cujo trânsito apressado pela cidade é permitido desde que ele obedeça a mais importante convenção urbana: o acordo tácito segundo o qual cada um deve manter a sua direita na calçada.

O pintor impressionista poderia ser então descrito nessa metáfora: aquele chato que anda do lado esquerdo da calçada, distribuindo panfletos (gosta de arte?), trombando com as pessoas apressadas para fazê-las parar para olhar o mundo. E se no século XIX já não tínhamos tempo para contemplar essa vida que nos escapa a cada instante, o que dizer do século XXI, quando num arrastar da tela podemos atravessar centenas de paisagens por minuto e esquecê-las na mesma velocidade. Como fazer caber a impressão do nascer do sol no espaço de poucos centímetros que agora separa o seu nariz do seu celular, como parar o deslizar frenético dos dedos? Essa paisagem que nos falta, nunca tivemos.

Walter Benjamin dizia que “era de bom-tom levar tartarugas para passear pelas galerias”, como uma forma de protestar contra o ritmo imposto pelo capital. Eu acrescentaria crianças à frase, principalmente aquelas que ainda não aprenderam a contar as horas. Que essa nostalgia pela multidão perdida se multiplique em nós, que em breve possamos contemplar juntos a fugacidade do instante, rosto e pés despidos ao sol.


Para ir além

O Pintor da Vida Moderna, Charles Baudelaire. Autêntica Editora, 198 páginas. R$ 50 . Sobre a modernidade.                                                                        

O Homem na Multidão, Edgar Allan Poe.

Diante da tumba, eu mesma tombo

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