Um corpo oco

Ter ou não ter um útero, usar ou não usar, parir ou não parir, dar ou não dar (vender? alugar?), quando, com quem, com quantos, se de pé, de cócoras, debaixo da árvore, na banheira ou no hospital, a questão da maternidade, da virgindade, a disputa pelos acessos e usos dignos ou indignos atribuídos a esse pequeno espaço oco dentro desse corpo ampliado, vêm de longa data e sim: essa história está todinha registrada na arte

O que faz uma mulher? Não o que ela faz, mas o que A faz?

Se lhe tirarmos todos os papéis sociais (“a mãe”, “a filha”, “a esposa”, “a puta”, “a santa”). Se cortarmos seus cabelos, se removermos a maquiagem de seu rosto e a despirmos de todo e qualquer ornamento, se lhe desmontarmos a pose, ainda assim, restará ali uma mulher?

Aviso: não pretendo aqui defender ninguém, nem qualquer ponto de vista. O motivo é simples, eu mesma não sei o que constitui uma mulher, ou mesmo um homem, ou qualquer sujeito que vive atrás e/ou apesar das suas heranças e máscaras sociais. Apenas acho a pergunta bem honesta: ei, você aí, o que te faz ser o que você é, ou te disseram que é, ou que você sente que é, ou gostaria de ser?

Poooréeeeeeemmmm, muito antes da costela de Adão, das escolas de boas maneiras, da disputa pela liberdade de exibir pelos no sovaco, da ascensão ou declínio das calças skinny ou do salto agulha, o útero foi e continua sendo um objeto recorrente no debate em questão. Seria essa pequena esfera oca, do tamanho de um punho fechado, capaz de nos significar?

Numa espécie de matrioska russa às avessas, a pergunta se amplia: qual o sentido desse receptáculo que habita o interior de uma estrutura autônoma (um corpo), que abriga um ser maior, muito provavelmente inconsciente de si, que se entende como humano, portador de uma forma dita de mulher, no interior de uma vida familiar, inserido num contexto social? Para que e para quem se engravida? Qual a dimensão desse desejo e a quem ele pertence?

Diane Arbus – Mulher sem cabeça, 1961.

Ter ou não ter um útero, usar ou não usar, parir ou não parir, dar ou não dar (vender? alugar?), quando, com quem, com quantos, se de pé, de cócoras, debaixo da árvore, na banheira ou no hospital, a questão da maternidade, da virgindade, a disputa pelos acessos e usos dignos ou indignos atribuídos a esse pequeno espaço oco dentro desse corpo ampliado, vêm de longa data e sim: essa história está todinha registrada na arte.

Disseminada entre esculturas, pinturas e afrescos ou, mais recentemente, na sua timeline do Instagram, a exibição do corpo materno foi e continua sendo frequente nas imagens: ostentam-se Madonnas, barrigas, seios fartos e amamentantes, a fertilidade como um passaporte só de ida ao destino de toda mulher. Ao lado do corpo materno, só pode estar ele: o filho-troféu, o pequeno grande herdeiro (sim, no masculino, pois em muitas culturas e, em certa medida, inclusive nesta, ainda vale mais este que carregará, além dos genes, o nome do pai).

Mas e o avesso? E a história das perdedoras? Dos filhos não tidos, do desejo ausente, impotente ou indiferente, do corpo vazio, cansado, murcho como uma bexiga em fim de festa? Sem o posto da mãe zelosa ou da vênus lasciva para ocupar, em que face desenhar o olhar vagante? Como representar esse oco, sem que ele precise necessariamente ser preenchido por um falo ou um filho?

À medida que cada vez mais mulheres artistas entram no “mundo da arte” e passam a se autorretratar, determinando como seus corpos devem ser representados e expostos, a natureza das imagens também se altera. Percebo uma outra sujeita (indefinida, inominável) nascer, rompendo progressivamente com a imagem idealizada da fêmea fértil e cuidadosa. Dessas (eu poderia citar tantas), hoje me debruçarei sobre uma em particular, que me faz sentir, como nenhuma outra, esse contraste entre imagem idealizada e sujeito que a habita. Ela é a fotógrafa Diane Arbus.

Nesse primeiro autorretrato, Diane ainda estava casada. Ela se fotografou grávida…

Diane Arbus – Autorretrato grávida, 1945.

… e depois com a filha recém-nascida, quando seu então marido ainda estava na guerra, em 1945.

Autorretrato duplo de Diane Arbus com a filha, Doon, 1945.

Talvez essas fotos tenham revelado à própria Diane algo que depois ressurge em todos os retratos que ela viria a fazer em sua carreira solo, ao se divorciar do também fotógrafo Allan Arbus. Há nessa jovem Diane de 22 anos uma conexão com quem a olha que persistirá em todas as suas imagens posteriores. Um olhar fantasmagórico e ao mesmo tempo profundamente humano. Um acesso àquele espaço oco, de onde a alma parece transbordar, ou se buscar. Um enigma.

Diane Arbus – Retrato de uma mulher porto-riquenha com uma pinta, 1965.

Diane Arbus frequentemente marcava encontros com seus retratados, saindo da sua zona de conforto, do seu espaço, para uma aventura em território desconhecido. Algumas vezes voltava para casa sem ter feito foto alguma. O objetivo de Arbus, além da fotografia, era ter acesso ao mundo dessas pessoas.

Com a licença da câmera, ela era convidada a entrar. Suas fotos contêm um ar desse tempo perdido, dispensado em conversas. Há um mistério nos olhos dos retratados. As fotos falam mais de uma despedida do que de uma chegada, quase como se testemunhássemos o fim de uma longa conversa entre essas pessoas que agora nos confrontam com uma certa intimidade. As fotos são uma espécie de selo: ao mesmo tempo que autenticam que o encontro se passou, nada dizem sobre o que se passou no encontro, que permanece em segredo.

Diane Arbus ficou famosa por seus registros de encontros com pessoas “estranhas”. Quando questionada sobre por que fotografar Freaks, respondeu que se interessava por pessoas que não tinham nada mais a temer:

“A maioria das pessoas passa a vida temendo ter uma experiência traumática. Os Freaks nasceram com seus traumas. Eles já passaram pelo seu teste na vida. São aristocratas.” (Diane Arbus)

Diane Arbus – Retrato de um homem jovem em casa, 1966.

De fato, os traumas dessas pessoas são tão expostos que seus retratos parecem atravessar a camada daquilo que sabemos sobre elas. Dizer dessas fotografias, descrevê-las, não é tarefa árdua, exceto pelo fato de que elas não tratam essencialmente daquilo que podemos dizer sobre elas. Ao contrário, são fotos de todo o resto quando se tira a camada visível da superfície.

Algumas particularidades técnicas tornam as fotografias de Diane Arbus mais compreensíveis: seu equipamento a forçava a chegar perto das pessoas que fotografava – um embate físico, mas também psicológico. Diane tinha consciência de que o ato fotográfico era, de certa forma, brutal, como ela mesma declarou: “Eu acho que dói um pouco, ser fotografado.”

Diane Arbus – Retrato de uma stripper no seu camarim, 1962.

Devota do médio formato, Diane Arbus usou predominantemente duas câmeras ao longo de sua carreira: uma Rolleiflex com duas lentes e uma Mamiya. Esse tipo de câmera é carregado no meio do corpo, e não na altura dos olhos. O fotógrafo faz o enquadramento olhando por cima da câmera, onde a imagem aparece invertida. Essa diferença interfere profundamente na relação entre fotógrafo e fotografado: não há um intermediário, o retratado olha diretamente para o fotógrafo e não para a câmera.

Outra particularidade é que normalmente essas câmeras são desprovidas de um fotômetro próprio, o que as torna mais apropriadas para ambientes de luz controlada (interiores), além de particularmente lentas: em ambientes internos, requerem o uso de um tripé, que envolve a escolha de um lugar fixo, um posicionamento de todos os elementos. Também é preciso medir a luz com um fotômetro externo, aproximando-o do rosto das pessoas, caminhar em direção ao outro, tocar sua face, sentir sua respiração. O último elemento dessa composição a tomar seu lugar é a própria Diane Arbus, quando caminha para trás da câmera. O que determinaria o momento do disparo? Quem responde é a própria Diane Arbus: “Eu não pressiono o disparador, a imagem o faz. É como ser derrotado suavemente.”

Diane Arbus – Uma jovem família do Brooklyn passeando no domingo, 1966.

Essa talvez seja uma explicação possível para a sensação que tive, desde a primeira vez que vi suas fotos, de que Diane Arbus estava se autorretratanto em todas elas. De fato, sua presença está na foto, no outro extremo que tensiona o olhar daqueles que ela retratou. De certa forma, é como se ela deixasse de ser a fotógrafa e as posições se invertessem: Diane sendo olhada pelos seus sujeitos. Há ainda uma ternura no olhar, quase um reconhecimento. Não aquele trocado entre amigos ou pessoas que se conhecem de longa data; não é um olhar familiar, mas também não é desconhecido. Uma troca de espelhos, um reconhecimento de iguais naquilo que é completamente estranho.

Entre seus primeiros autorretratos e seus retratos, a mulher que antes se encarava diante do espelho com o ventre cheio e os seios fartos ostentando a cria rechonchuda, agora parece vagar à deriva, em busca de si mesma. Como nessa imagem em que o filho dorme nos braços da mãe, que nos remete à Pietá, aquela que é a mãe de todos, menos dela própria.

Diane Arbus – Mulher segurando uma criança no Central Park, 1956.

Eu não sei quem é essa mulher. Ela também não parece saber. E nesse desconhecimento, nos conectamos, como se partilhássemos apenas o sentimento de carregar um vazio até mesmo de ar. Um oco, ao redor do qual todo o resto (a cultura, a sociedade, a família, a roupa e a carne) é casca.

E, devagar, vagamos.

(Todas as fotografias são reproduções extraídas do livro Diane Arbus – Revelations)


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