Um bar

Será que o que se esperava de nós há duas ou três gerações ainda é o que se espera de uma mulher no século XXI? O que mudou de lá pra cá? Mudou, será? Você, mulher, raspe essa axila, endireite essa coluna, feche as pernas, e responda, sem gritar, o que espera de si? Para si?

Um bar é mais que uma opção de lazer para preencher aquelas poucas horas do que resta de nós nas sextas-feiras, cedidas a conta gotas pelos patrões. Um bar é mais que um lugar para nos esquecermos que segunda-feira temos que devolver nossos corpos para o opressor.

Um bar é também a face gloriosa de um carnaval que desfila no meio fio da calçada, é encontro de corpos, troca de fluidos e números de telefone, mas também de ideias. É palco de anarquia e subversão dos costumes. Um bar sempre foi e sempre será um berço de qualquer revolução.

Vale lembrar que foi justamente em um bar, mais precisamente no Cabaret Voltaire, em 1916, em Zurique, que o Dadaísmo começou. Um movimento contra o movimento, contra a aceleração e o fascismo do progresso futurista, contra a desumanização pelas máquinas, contra a glorificação dos vencedores.

Uma arte contra a arte.

DADA: uma palavra que não significa nada e ao mesmo tempo alcança seu sentido primordial: a ausência de sentido, o questionamento de todas as ordens estabelecidas e de quem as define. Afinal, diante da guerra, o que significa sermos humanos, quando deliberadamente decidimos bombardear cidades, quando estupramos, sequestramos, matamos e abandonamos uns aos outros à própria sorte?

Se até então a Arte, maiúscula, se ocupara de enaltecer e defender os valores da cultura, de retratar reis, mitos e deuses, de alcançar o Belo – estético ou ético –, pela primeira vez, vemos surgir um movimento que duvida da própria existência da beleza, que comemora a feiura e a desilusão diante do caos, que defende a insanidade como única forma de libertação de uma ordem que nos oprime, escraviza e destrói.

Se um artista sobe ao palco de um teatro para receber aplausos, num bar, descemos aos porões para compartilhar a miséria humana, sem promessas de recompensa.

Acho que nem eu mesma sabia que um bar seria palco para tantas das minhas próprias histórias. Pois, foi num bar, lá em 2006, numa escapada para uma cerveja proibida “para uma mulher casada”, que eu senti, no primeiro gole gelado, o gosto doce de me pertencer.

Eu, então mulher de alguém, com sobrenome, aliança e papel passado, acostumada a ouvir frases que começavam com “mulher minha não….”, desci ao porão daquele bar sabendo que aquele só poderia ser o primeiro dia do fim.

Voltei para casa embriagada de lucidez, pensando em como faria para devolver as chaves do apartamento, as toalhas bordadas do enxoval e o jogo de louça com pratinhos combinando com os talheres e explicar que dirigiria por 362km até amanhecer de volta na minha infância. Precisava sentir o cheiro fresco das coisas que quase havia esquecido e perguntar: quando foi que eu deixei de ser minha pra ser de alguém?

É sobre isso, e não tá tudo bem.

A condição de ser, além de mulher, mulher-sua, mulher-filha, mulher-esposa, mulher-direita, mulher-honrada, mulher-mãe, mulher-difícil, mulher-guerreira, mulher-trabalhadora, mulherão, mulher-enxuta, mulher-macho, sim senhor. Quantos papéis nos são designados e de que forma por eles somos socializadas e significadas?

Porque sempre que eu ouço alguém falar que antes de sermos mulheres nós somos seres humanos, eu fico na dúvida. Será mesmo nessa ordem? Será que podemos ser humanas ANTES de sermos mulheres, ou será que nós conseguimos, vez ou outra, existir, APESAR disso? Afinal, que horas dá pra ser humana, quando passamos a vida sendo educadas para sermos sobre-humanas?

Será que o que se esperava de nós há duas ou três gerações ainda é o que se espera de uma mulher no século XXI? O que mudou de lá pra cá? Mudou, será? Você, mulher, raspe essa axila, endireite essa coluna, feche as pernas, e responda, sem gritar, o que espera de si? Para si?

Respondo em uma palavra: quero respeito.

Mas para mim é fácil, você diria. Eu, artista, professora, curadora, doutora, classe média, quarentona, versada em línguas, viajada, estudada, empregada… Ainda que com algumas pedras no meio do caminho, dois filhos e alguns caminhos no meio das pedras, eu até poderia, vez ou outra, esquecer que sou mulher-mãe-latino-americana e reivindicar o direito de ser apenas uma pessoa, sem ornamentos. Ser ouvida, considerada, convidada, independentemente de.

Me respeita aí moleque, você não sabe com quem está falando? Eu sou UMA PESSOA, UMA PESSOA, UMA PESSOA. Uma P, P, P, P, Piiiiiiiiiiiiiiiiiiranha, puta, passiva, lasciva, vadia, eu queria, eu ia, mas quem me autorizaria?

Ela é fácil porque é pobre, você diria.

Quem me deixaria… Andar sem medo, sem olhar para trás, para os lados, para cima e para baixo antes de atravessar o “teu” caminho, levantar do teu colo e te vencer na queda de braço, empunhar a furadeira, sentar no banco do motorista, na ponta da mesa, na cadeira de presidente?

Se eu entrasse pela porta daquele mesmo bar, em Zurique, em 1916 ou 2022, você me olharia nos olhos sem me julgar pelas minhas roupas ou rugas, me convidaria para sentar sem medir minha flacidez, sem conferir minha bunda, quando eu lhe desse as costas, outra vez? Você carregaria meu sobrenome depois do teu, suportaria o choro dos meus filhos, o peso da minha história? Você me admiraria, se eu não fosse a TUA mulher?

E ainda que eu pudesse, sozinha, vencer todo o preconceito, abrir meu próprio bar e os potes de conserva, fazer meu imposto de renda, tirar o silicone dos peitos, cortar minhas trompas, queimar meus sutiãs, desistir do salto alto, superar as expectativas, bater todas as metas, chegar lá sozinha “porque EU MERECI”… Como abandonar o barco, quando a cada dia seguimos estampadas nos jornais: entre o corpo encontrado na beira do asfalto e a gostosa da vez, violadas de tantas maneiras que, entre mortas e feridas, não salvamos ninguém.

Eu não posso deixar de ser mulher num mundo onde ser mulher significa sentir medo, todos os dias.  Num mundo em que as violências vêm no plural: na guerra, na domesticação e no controle dos corpos, na romantização da maternidade compulsória, no assédio moral, no abuso sexual, na misoginia, na violência psicológica, obstétrica, racial e econômica, nas triplas e quádruplas jornadas, e sobretudo na fome e na miséria que nos obrigam a suportar  todas essas formas de exploração.

Não, a violência não é exceção, não é consequência da guerra ou resquício da nossa animalidade, ela é, sim, um projeto muito bem engendrado a serviço de uma estrutura desenhada para beneficiar poucos e oprimir muitos. E esse projeto, em grande medida, é difundido através de uma cultura de imagens que ditam os costumes.

Se você pensou na moda ou na publicidade, saiba que as imagens há dezenas de séculos carregam signos do que deveríamos ser ou performar. Se mulheres: o cuidado, a modéstia, a resignação, a obediência, o abandono de si. Se homens: a força, a violência, a invencibilidade.

Seria ingenuidade dizer que a arte, essa que fica trancada nas salas mais solitárias dos museus de arte contemporânea, tem o poder de mudar as estruturas sociais vigentes. Mas, por outro lado, aquelas imagens mais inocentes, disfarçadas de bondade e cuidado divino, nos cercam e se calcificam a ponto de não mais as questionarmos.

Se os gregos clássicos já utilizavam imagens para nos conduzir aos modelos de cidadão ideal, se todos os regimes totalitários utilizaram imagens para se sustentar, é porque sim, nós acreditamos nas imagens. Enquanto a realidade é complexa e diversa, as imagens nos oferecem algo de simples e mágico que nos pega pela mão e diz: “sorria, mulher guerreira, parabéns pelo seu dia.”

Talvez por isso, constato, os bares não são, definitivamente, lugares para sermos mulheres (ou homens) de ninguém. Que seus porões continuem a celebrar a glória daqueles que recusam as palmas e os troféus dos vencedores. Que sigamos abraçados no fim de cada noite, comemorando a nossa impotência diante da desilusão humana. Que a constatação de que o inimigo não para de vencer nos comova. Que possamos brindar a cada pequena revolução.

Para Ieda Godoy,

feliz dia das mulheres revolucionárias.

(Todas as obras que ilustram esse texto são colagens da dadaísta Hannah Hoch, que viveu os dias do Cabaret Voltaire, sobreviveu a duas grandes guerras e ao nazismo).

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