Sob a mira dos algoritmos

Afinal, o que há por trás dos mamilos? Ou, dada que a questão parece ser internacional, "What's with the nipples?"

Esta semana correu como rastilho de pólvora a notícia de que nem mesmo o renomado Pedro Almodóvar escapara à censura algorítmica do Instagram. A rede social apagou impiedosamente, e depois se retratou, restituindo o belíssimo cartaz criado por Javier Jaén para o filme Madres Paralelas. O motivo? Um mamilo feminino.

Fiquei em dúvida, a princípio, se deveria escrever sobre uma notícia que nem é mais notícia. O tema não é novo, fato, mas jamais ficará velho. Mesmo que esqueçamos deste breve incidente com o cartaz do filme de Almodóvar, sempre haverá outro mamilo a condenar ou libertar.

Então, afinal, o que há por trás dos mamilos? Ou, dada que a questão parece ser internacional, “what’s with the nipples?

De acordo com o fundador e CEO do Instagram, Kevin Systrom, “a culpa é da Apple”. Em um discurso feito em um evento em Londres, o executivo alegou que o aplicativo não permite fotos de mulheres sem camisa por conta da classificação etária do conteúdo, que determina que apps permitidos para menores de 17 anos não podem, de maneira alguma, conter nudez.

Por conta dessas proibições, aparentemente indiscriminadas e arbitrárias, nos últimos (cinco?) anos, diversos grupos da internet aderiram ao movimento #FreeTheNipple, que defende que as mulheres e os homens devem ter os mesmos direitos de exibir seus corpos nas redes sociais, já que a exibição dos mamilos masculinos é permitida.

Postagem do perfil do Instagram @mamilas1, 2021.

Parece simples, mas insisto, o buraco é fundo.

Vale lembrar que o Instagram não censura todos os mamilos femininos. O aplicativo permite, por exemplo, pinturas e esculturas que exibam a nudez sob a forma de “arte”. Fotografias sob o mesmo pretexto, no entanto, costumam ser banidas em poucos segundos pelos algoritmos. Qual a lógica do Instagram para estabelecer essa distinção entre a fotografia e as outras formas artísticas? A justificativa dada é que os mamilos poderiam pertencer a pessoas vivas e a plataforma não teria como saber se elas consentiram a postagem. Já a publicação da foto de uma Afrodite de mármore não apresentaria o mesmo problema.

Cicatrizes pós-mastectomia e fotos de mães amamentando também foram recentemente permitidas na rede, após protestos como os da artista Micol Hebron, que teve sua conta suspensa por postar uma fotografia com os seios à mostra, que fazia parte de uma exposição dedicada à conscientização sobre o câncer de mama. Em resposta, a artista criou um “adesivo” de mamilo masculino: uma imagem circular que as mulheres podem copiar e colar sobre os próprios mamilos.

Postagem da artista Micol Hebron na sua conta @unicornkiller1

De acordo com as regras da plataforma, portanto, uma vez que o cartaz do filme de Almodóvar estaria inserido em um contexto não só artístico mas também de maternidade, o mesmo não deveria ter sido tratado como algo pornográfico ou sexualizado. Em entrevista ao El País, o próprio Javier Jaén indagou, antes da retratação da rede social: “A quem devemos proteger de ver esta imagem? Dá o que pensar… Acredito que estamos falando da imagem menos erótica do mundo”.

Discordo desta última frase e vou explicar por quê.

É sempre bom lembrar que, seja na arte ou na sociedade, nem toda nudez costuma ser castigada. Em 2017, vimos o país se revirar em protestos contra um vídeo que mostrava um trecho editado de uma performance durante a qual uma criança presente tocou o calcanhar do corpo nu do artista. Pouco tempo depois, no mesmo ano, a mostra Queermuseu foi desmontada em Porto Alegre, sob fortes ataques conservadores e religiosos. De dezembro de 2017 a março de 2018, a exposição Vestidos em Arte – Nus nos Acervos Públicos de Curitiba, exibida no Museu Oscar Niemeyer, sofreu diversas ameaças e enfrentou pelo menos cinco processos judiciais pedindo seu fechamento alegando que as imagens eram pornográficas.

Na última semana desta exposição, durante uma palestra oferecida por dois dos artistas que tinham seus trabalhos em exibição — Rodrigo Braga e Fernanda Magalhães, foi colocada novamente a questão: “Por que a nudez incomoda tanto?” Na ocasião, observei que não se tratava de qualquer nudez, afinal ela sempre esteve presente na arte, mas de certa nudez (não é difícil concordar que mesmo um integrante do partido político mais conservador e cristão se sentiria perfeitamente confortável tirando uma selfie ao lado do Nascimento de Vênus de Botticelli, mesmo que a deusa nua pudesse representar uma ameaça de paganismo e atentado ao pudor). Mas se apenas certa nudez incomoda, que corpos são esses que nos perturbam?

Fazendo uma breve análise das obras apresentadas nestas mostras, percebi, de fato, que não era o corpo nu (estivesse esse presente em carne e osso ou representado nas paredes, em fotografias, esculturas ou pinturas) que gerava tanta controvérsia, mas, especificamente, o corpo livre. Não foi o homem estar nu no museu que causou pânico, mas sim o fato de ele estar “solto” a ponto de poder ser tocado. Porque não era apenas o corpo dele que estava livre, mas também o nosso corpo que poderia dispor dele como desejasse. E com o nosso desejo, livre, o que fazer?

Fernanda Magalhães na performance Grassa Crua, 2019.

As obras dos dois artistas no MON, nas quais Rodrigo Braga e Fernanda Magalhães se apresentam também nus, trazem outros “perigos” da liberdade. Quando Fernanda Magalhães, em sua fotografia, liberta de vestimentas seu corpo velho e gordo, ela também nos livra de sermos corpos obedientes à norma. E que perigo se todos os corpos resistirem ao padrão inalcançável da juventude eterna e ao ostracismo reservado à velhice? Já Rodrigo Braga se enterra vivo com um bode recém-abatido na obra Comunhão para vivenciar seu próprio medo da morte. E que perigo se nós também não tivermos medo? Corpos livres que não podem ser fixados como borboletas em uma mesa de estudos, que nos fazem questionar as prisões, é isso que parece incomodar a sociedade dominante, muito mais do que qualquer nudez.

Rodrigo Braga – Comunhão 1, 2006.

Não pude esquecer desses corpos.

Passei a indagar, desde então: em que ponto os corpos na arte se desprenderam das paredes e pedestais, e começaram a nos incomodar, a querer correr soltos por aí, como crianças? (Essas obras mal-criadas que saem ainda por se fazer diante de nós, em nós…)

Voltando aos mamilos, poderíamos perguntar: quando foi que eles apareceram pela primeira vez na arte e em que contexto passaram a ser considerados um incômodo? Mesmo que andemos com as nossas cadeiras para trás até a mais antiga obra de arte já encontrada, a Vénus de Willendorf, não vamos encontrar um único período em que os seios femininos não estivessem devida e publicamente representados, designando fartura, fertilidade e proteção. Quando foi então que eles passaram a ser erotizados ou considerados um problema?

Sarah Lucas – Self Portrait with Fried Eggs, 1996.

Vamos por partes. Já parou para se perguntar por que na Europa o topless é perfeitamente banal e nas Américas ele é um tabu? Então, senta que lá vem história.

No início da Era Moderna, com as grandes navegações e a ascensão da burguesia, a ideia de amor materno e a conexão carnal entre mãe e filho precisavam ser amplamente difundidas para estabelecer a imagem do que hoje conhecemos como a família tradicional, através do casamento monogâmico. Para isso a figura da Virgem Maria, antes indiferente ao filho que exibia em seu colo, é reorganizada com base nessa nova intenção de ressaltar os laços familiares entre mãe e filho que irão fundamentar os valores burgueses. A imagem da virgem amamentando o menino cria assim a ideia de que há um vínculo carnal e espiritual com o filho, onde o leite materno é o dom da própria vida. E vivam as peitcholas que passaram a ser exibidas por toda a arte europeia como símbolos da boa mãe e esposa.

Leonardo da Vinci – Madona Litta, 1490.

Já contei em uma das colunas anteriores sobre as imagens em que o leite mariano era também usado como metáfora da conversão pelo evangelho, o que motivou o aparecimento de imagens da Virgem amamentando adultos e almas perdidas no purgatório com esguichos de leite à distância. O curioso dessas imagens é que em nenhum momento o bico do seio é escondido. A censura é imposta tão somente pela distância aos supostos beneficiados pelo leite de Maria, que não podem tocá-la jamais.

Pedro Machuca – La Virgen y las ánimas del Purgatorio, 1517.

Se sua imagem segue imaculada, ainda que seu seio esteja exposto, podemos concluir que nada há de sexual até então na exibição dos mamilos femininos. Onde então a porca torce o rabo?

Pois bem, cruzemos o Oceano Atlântico. O que encontraram os europeus quando chegaram aqui? Mulheres indígenas com os seios à mostra. O que encontraram quando cruzaram novamente os oceanos em busca de povos para escravizar? Mulheres negras com os seios à mostra. A hipótese que aqui levanto é a de que o pudor em relação a esta parte de corpo se dá mais por uma necessidade de distinção do que é associado à selvageria e à desumanização desses corpos escravizados do que propriamente ao erotismo — ainda que este último venha logo em seguida, quando sexualizamos também seus corpos tidos como “exóticos”, que passaram ser então tratados como objetos de consumo e mercadorias do Novo Mundo, prática que segue firme e forte até os dias de hoje, infelizmente.

Albert Eckhout – A Negra, 1641.

Para acentuar então a diferença entre a Maria Santa e esses corpos ditos “selvagens”, gradativamente o culto ao leite mariano é substituído pelo culto às suas lágrimas, à medida que passamos a valorizar cada vez mais as figuras das virgens sofredoras, como a Pietá, sobretudo, veja só, nos países católicos colonizadores das Américas: Portugal e Espanha. Enquanto o sofrimento é enaltecido como forma de redenção, o leite abundante é gradualmente esquecido e o seio virginal, encoberto.

Vera HoltzUntitled, 2017.

A exposição dos seios associada ao pecado é acentuada na mesma época com a reprodução massiva da figura de Maria Madalena. Ela é o golpe de mestre da Igreja Católica no período da contrarreforma que consegue, em uma única jogada, criar o próprio tabuleiro e dar um xeque mate.

Acompanhem meu raciocínio: até então, expor o seio não era pecado, haja vista que a aparição dos mamilos, ainda que em um contexto mitológico ou maternal, era amplamente difundida. Enquanto Eva, envergonhada, escondia apenas sua vulva com uma folha de parreira, mas exibia faceira seus balangandãs mamários, Madalena encarna a primeira versão sexual dos mamilos na arte, ao mesmo tempo escondendo e revelando seus seios atrás de seus longos cabelos. Sua figura representa, simultaneamente, a criação e a condenação do mesmo pecado.

Ticiano – Madalena Penitente, 1533.

Mas não é só isso que a Igreja Católica nos oferece com essa figura. Com seu pecado, Madalena se torna uma espécie de mártir dos condenados. Por meio de sua postura arrependida, ajoelhando-se cada vez mais rasteira e erguendo os olhos em perdão para seu Salvador, ela é também a promessa de redenção através da culpa, da submissão e da penitência. Resumindo: criamos o pecado (da liberdade, do corpo nu que é também o corpo selvagem), condenamos o pecado (justificando a catequese, a escravização e o extermínio desses povos ditos pagãos) e oferecemos a cura por intermédio de quem? Da própria Igreja Católica: a gênia.

Cartaz do filme O Pecado de Nora Moran, 1933.

Dada toda essa explicação, fica ainda a dúvida quanto à solução. O que fazer com os mamilos nas redes sociais da internet? Há os que defendam que liberar geral só aumentaria a sexualização dos corpos das mulheres, já tão fatigadas pela objetificação. Por outro lado, há quem diga que uma vez liberados os mamilos, o processo de erotização poderia ser revertido, até que eles sejam só mais uma parte do corpo como outra qualquer. E você, o que pensa disso tudo? Conta aqui nos comentários.

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