Pela permeabilidade da resistência

Existe a arte mole e a arte dura, a arte do aplauso e a da pedrada, a que se impõe e a que se opõe, tais quais as forças de Newton, em que resistir é reagir com a mesma força aplicada, só que em sentido contrário

Essa semana eu fiz uma enquete no Instagram para decidir o tema da coluna e vocês escolheram: “Arte e Resistência”.

Atendendo ao chamado da democracia, porém resistindo à tentação das obviedades que imediatamente me vêm à mente, rumino as palavras: resistirmos, a que será que se destina?

Na física estudamos a resistência dos materiais, onde os mais duros são os mais nobres. Na química, nobres são aqueles elementos no cantinho da tabela que não se misturam com ninguém. Na ecologia, resistir é, supostamente, sobreviver às adversidades. Nesse ponto, cada vez mais a natureza tem nos mostrado que, no caso dos ecossistemas, resistir pode ser também uma sentença de morte: quanto mais resistente uma espécie, mais a cultivamos, e ela se torna uma praga que destrói tudo ao seu redor. Se queremos que a vida resista à praga que nos tornamos, precisamos aprender (com urgência, porque já estamos muito atrasados) que o equilíbrio é frágil, muito frágil, e que é justamente essa fragilidade em que todas as estruturas estão interligadas que nos reivindica o cuidado e o respeito.

Na arte, as leis da resistência dos materiais também se aplicam. Existe a arte mole e a arte dura, a arte do aplauso e a da pedrada, a que se impõe e a que se opõe, tais quais as forças de Newton, em que resistir é reagir com a mesma força aplicada, só que em sentido contrário.

Busto de Caracala e Marina Abramovic em sua performance Rythm 0.

Essa força pode ser observada, por exemplo, no fato de todos, absolutamente todos os governos autoritários terem tentado (com relativo sucesso) destruir a arte. Generalizar, no entanto, é sempre perigoso. Será que todas as artes foram perseguidas e destruídas, indiscriminadamente? Quais critérios indicariam uma potencial subversão? Quais obras foram, ao contrário, preservadas, exaltadas?

É fato também que alguma coisa essas estruturas de poder colocaram no lugar do que destruíram. Queima-se um Deus pagão, fixa-se uma cruz. Cai uma cruz, ergue-se um Stalin. Derruba-se um ditador, elege-se um salvador. E o de cima sobe e o de baixo desce (bom chibom chibombombom).

Mas que arte desce e que arte sobe? Agora está na moda dizer que tudo é um ato de resistência. Assim como já faz tempo que, do futebol à culinária, dando uma passadinha rápida pelo corredor dos urinóis e pelo design de sobrancelhas, tudo é arte. E se tudo é arte e toda a arte é uma forma de resistência podemos pensar, pelo menos, que nem sempre essa resistência esteve apontando para o mesmo lado da história, da mesma forma e com a mesma violência ou intensidade.

Do Ho Suh, Public Figures, 1998.

Se admitirmos, por exemplo, que a própria arquitetura é (porque sempre foi) arte, e pensarmos as cidades como um grande museu a céu aberto, dá para perguntar a todos esses edifícios imponentes: quem os encomendou, quem os desenhou, construiu, a que propósito (funcional, religioso, ideológico) serviam? E ainda, sobre quais corpos e escombros eles se ergueram? Vejam que a arquitetura é uma arte bem resistente, taí faz uns milênios em pé. Impossível olhar para aquela igreja Românica, com suas paredes grossas de mais de metro e janelas ínfimas, sem imaginar de qual inimigo tanto nos abrigavam.

Dá também para pensar a própria cidade como o suprassumo da civilização, a obra-prima da humanidade contra as intempéries da natureza. As primeiras cidades cujos desenhos conhecemos têm formatos bastante interessantes, belíssimos até. Suas pontes e pontas em formato de estrelas, no entanto, não servem apenas como ornamento, ou para proteger seus habitantes dos perigos selvagens, mas como membranas semipermeáveis que separam, numa espécie de osmose social, quem pode entrar de quem não é bem-vindo. Se hoje essas fronteiras e paredes são menos nítidas — trocamos os muros de pedra e os portões de ferro pelos carimbos nos passaportes e bandeiras de cartões de crédito — , elas continuam lá, rígidas.

Projeto de Vincenzo Scamozzi (1549-1616) para a cidade renascentista Palmanova.

Suspeito que não era dessa resistência que vocês esperavam que eu falasse. Imagino, inclusive, que pensaram no oposto. Que toda arte é bela, progressista, antifascista, defensora da diversidade, divisor de águas que separa a galera “do bem” das pessoas “de bem”, #vivaacultura! Mas não é “bem” assim. Insisto: há a arte dos opressores e a dos oprimidos, a dos vencedores e a dos vencidos, dos revolucionários e dos resolvidos, etc, etc.. Inclusive, se contabilizarmos só os pedestais do Louvre, veremos que há bem mais exemplares da arte dos vencedores do que o contrário.

A única generalização possível na arte é essa: toda a arte é produto da cultura. Mas nem toda cultura é plural, inclusiva, democrática. A maioria, inclusive a nossa, tentou se impor e destruir as que estavam ali antes. Viver junto, aceitar o diferente, é um trocinho complicado (e relativamente novo) no nosso sistema de pensamento. A gente até diz que consegue, que aceita, que acolhe, mas olhando bem de perto, mas bem de pertinho mesmo, ainda duvido.

Monumento das bandeiras coberto de tintas em protesto contra o genocídio indígena, 2013.

Mas há, sim, formas de arte que resistem, aí sim, à tentação de se impor sobre todas as outras formas de existir. Além das forças que se opõem ou se impõem, há a arte que se dispõe, mesmo diante do potencial opressor, desarmada, enquanto nos oferece seu corpo para ser tocado, violado, cortado, dobrado, contando apenas com o que resta da nossa civilidade para protegê-lo. O que essa arte expõe e revela, muito além da nudez, em suas performances, são as nossas pulsões. O que lhes causamos, é a obra, a dobra, a sobra.

(Mata a cobra e mostra o pau.)

É nessa vulnerabilidade, nessa permeabilidade da pele, fina membrana que qualquer um atravessa, que a resistência se faz: porque resistimos ao desejo de destruir o outro, tal qual resiste a flor da moça contra a Guerra do Vietnam na fotografia de Marc Riboud, ou o corpo do estudante chinês diante do tanque de guerra na Praça da Paz Celestial.

O artista Wagner Schwartz, durante a performance La Bête, segura a réplica de um dos “bichos” de Lygia Clark.

É por isso que nós odiamos a arte contemporânea. Porque ela defende a liberdade (talvez a coisa mais importante e perigosa a ser defendida em qualquer sociedade) quando nós mesmos ainda somos escravos das formas “corretas” de viver, das regras de boa conduta, do modelo de cidadão exemplar que serve ao sistema. Porque liberdade é uma coisa que todo mundo quer ter, mas ninguém quer dar. E se eu não posso ter, como ousa você, artista, dela usufruir?

A arte que aprendemos a chamar de “arte de resistência”, fique claro, não é qualquer arte, é a contracultura, essa atrevida que denuncia a nossa servidão: na sexualidade, no patriarcado, na maternidade, no consumo, no capitalismo, na religião. Nós não somos livres, nunca fomos, grita essa arte. Ela nos comove, nos diz da nossa mortalidade, nos tira a fórceps, unhas e dentes da nossa zona de conforto….

Por alguns minutos.

Yoko Ono em Cut Piece.

Finda a performance, o que fazer? Saímos (impactadíssimos) das salas de exposição e vamos tomar aquele sorvetinho no café da Dona Marly, para desanuviar, antes de dar aquela passadinha no shopping, que hoje é Black Friday. Gira a roleta da indústria cultural e bora assistir aquela série nova na Netflix que amanhã é White Monday. Afinal quem é livre para ser artista sem comida na mesa?

Como resistir ao conforto do conforto?

Tenho aprendido com as minhocas (da minha cabeça de da composteira), que os elementos mais nobres são os mais abundantes. Não é à toa que todas as estruturas orgânicas têm um único elemento comum: o carbono. Este que nos fósseis é a medida do tempo, da morte, da vida, e da transformação.


Para ir além

Estratégias da Arte em uma Era de Catástrofes, Maria Angélica Melendi. Editora Cobogó. 416 páginas.

Testemunhas de uma democracia doente

Sobre o/a autor/a

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