O fim da historia é só o começo

Dizer que só precisamos de uma história da arte é o mesmo que dizer que não existe raça, porque só existe uma humanidade. Que não existe gênero porque todos são iguais, quando não são.

Quando minha primeira filha nasceu, eu, no desespero, digo, na busca por respostas sobre o que fazer com um bebê que não parava nunca de chorar, li um livro de um médico que defendia que os pediatras deveriam se posicionar mais claramente, dizendo, já na primeira consulta, se eles estavam ali para defender os pais ou a criança. Do lado dos pais estariam aqueles que dizem que não se deve acostumar a criança no colo, mas deixá-la chorar para que ela aprenda a se acalmar sozinha, por exemplo. Do lado da criança estariam aqueles que, por sua vez, defendem, ora pois: as necessidades da criança.

Então aqui, como escritora dessa coluna, sinto que preciso deixar algumas posturas claras: eu, Nicole, mulher, artista, defendo uma história da arte escrita a partir das obras produzidas por mulheres.

(Vejo telefones celulares sendo desligados impacientemente. Ouço pequenos neurônios exaltados gritando e correndo em círculos “como assim, como assim?”. Espero críticas. Sou, inclusive, bem íntima delas porque, como toda mulher “bem educada”, eu as pratico há anos)

Mas, veja, quando eu, Nicole, afirmo defender uma ideia, não quer dizer que eu a inventei, que estou sozinha, mas sim apontando uma direção: diga-me com quem andas e eu te direi se vou ou não.

Barbara Kruger, We don’t Need another Hero, 1986.

A proposta de se pensar em mundos, em culturas, em histórias das artes, no plural, não é exatamente inovadora. Stuart Hall já defendeu essa ideia quando propôs os estudos culturais, abrindo discussões sobre gênero, raça, etnias e pós-colonialismo. Hans Belting também já escreveu sobre isso quando publicou O Fim da História da Arte, argumentando que pensar uma única história da arte não era possível, porque ela não poderia ser lida em linha reta, como se cada movimento fosse a evolução natural darwiniana do anterior. Belting defendia que os bens culturais (que nem sempre se pretendiam arte) produzidos em cada período histórico deveriam ser analisados separadamente, a partir de cada contexto. Faz sentido, não?

Mas digamos que a gente considerasse reler tudo o que já foi escrito, colocando uma lente de aumento sobre cada parágrafo dessa grande história da arte, buscando elucidar cada uma de suas particularidades isoladamente, isso não mudaria o fato de que poucas mulheres estariam incluídas nela, certo?

E, mesmo que todos concordássemos ser importante e necessário contar as mulheres nessa história, a tarefa não deixa de ser complexa, porque é preciso antes decidir como fazê-lo. Afinal, esta seria uma história da arte com as mulheres, ou só das mulheres mesmo, ou a história das mulheres na arte? Ou não, pera, não era melhor começar pela arte feminista (ai)? Existe arte feminina (ui)? Ou podemos falar da arte, arte verdadeira mesmo (oi?), só que produzida por mulheres que tentavam se igualar aos homens (eita!)? Mas quais mulheres? Ué, tem diferença? Que história é essa mesmo que você quer contar?

Ana Mendieta, Untitled (Facial Hair Transplant), 1972.

Vou tentar explicar respondendo a algumas perguntas imaginárias que planto agora em vossas cabeças:

A primeira delas é “Como assim, escrever outra história da arte?” Seguida de “Para quê? Já não existe uma?” Afinal, não é mais fácil dar aquela cavoucada nos arquivos e ir incluindo uma mulher renascentista aqui, uma impressionista acolá, quem sabe aparece uma mãe do abstracionismo ou outra surrealista desconhecida logo mais adiante? “Coloca aí também umas mulheres negras, ou indígenas, pra ninguém reclamar…”

Dá, claro que dá, inclusive é importante incluir, mas isso não muda o fato de que muita coisa não vai se encaixar nesses discursos. A pergunta “Já não existe uma?” talvez esteja justamente colocada para mostrar o caminho. Porque só existe uma, quando deveria haver muitas. Dizer que só precisamos de uma história da arte é o mesmo que dizer que não existe raça, porque só existe uma humanidade. Que não existe gênero porque todos são iguais, quando não são. Deveriam ser, em muitos aspectos, mas não são.

Linda Nochlin, em 1971, perguntou “Por que não houve grandes mulheres artistas?”. Talvez a resposta, mais uma vez, esteja na pergunta: o que significa ser “grande”? Porque apesar de todas as dificuldades e papéis sociais impostos a elas, muitas mulheres artistas existiram e continuam existindo. Se elas são “boas”, “tão boas quanto”, ou “melhores que” os grandes homens artistas brancos continua sendo pesado, medido e estabelecido com a régua, veja, dos homens brancos (que, inclusive, cultivam o hábito de medir-se com réguas). Ignorando-se que muitas delas não estavam sequer produzindo suas obras baseadas nos mesmos desejos e questões dos homens de suas épocas. Então, em vez de dizer que “elas eram tão boas quanto qualquer homem”, o que não diz nada sobre seu trabalho, poderíamos dizer: “elas estavam buscando responder a outras questões de formas diferentes”.

Também dá para tentar perguntar, à maneira de Nietzsche: “para que” e “para quem” serve essa história que já foi contada. Se é fato que as mulheres foram esmagadoramente excluídas das instituições e dos anais oficiais da arte, isso não pode ser um simples equívoco curatorial facilmente remendado enfiando nomes de mulheres “esquecidas” aleatoriamente nos catálogos e livros já escritos (daí a dificuldade dos curadores que estão há anos tentando simplesmente incluir mais mulheres nos museus para “calar a boca dessas feministas”). É preciso perguntar o que ficou de fora dessa seleção e por quê.

Vou tentar criar uma imagem para exemplificar. Imagine a história da arte como um grande colar de miçangas. Agora pense que alguém estabeleceu que esse colar deveria ter apenas miçangas “boas”, e que as melhores eram as verdes, sobretudo as verdes mais claras e mais redondas. E aí você tem um critério para fazer esse colar e, buscando fazer o melhor possível, passa a atravessar esse fio de nylon imaginário com todas as miçangas verdes claras e redondas que encontra. Percebe quanta coisa ficou de fora?

Note também que o que foi excluído não era necessariamente de pior qualidade, mas que apenas, por um critério arbitrado por alguém, não respondia às demandas daquele sistema. Vale também observar que esse colar único não permite outras definições ou mudanças de sentido sobre o que é ou deixa de ser arte. Isso explica por que ouvimos aquela frase tão frequente: “isso não é arte, não pode ser”.

Agora imagine esse colar sendo construído por séculos e séculos.

Guerilla Girls, As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo? 2017.

Ok, Nicole, mas não é mais fácil dar uma afastada nas miçangas verdes, enfiar o que ficou faltando nos espaços e fazer um colar bem bonito, cheio de miçangas coloridas, sem precisar destruir o que já temos?

Primeiro, ninguém falou em destruir nada, a proposta aqui é construir algo além. Segundo, podemos, claro que sim, contar uma história da arte mais plural, mas antes precisamos olhar de perto, para cada outra espécie de miçanga e nos perguntar: quais suas especificidades? Como seria um colar todo feito de miçangas azuis, ou vermelhas, ou brancas, ou pretas, ou quadradas, ou triangulares? De que maneira elas se organizam e diferem das miçangas verdes, quais são as suas formas, luzes, cores, elucubrações próprias? Isso não é mais enriquecedor do que imaginar como poderemos fazer elas serem aceitas pelos adoradores de miçangas verdes?

Se pararmos para pensar, a própria ideia de inclusão pode significar o contrário de diversidade. Porque também pode ser uma forma violenta de tentar fazer algo que não cabe se adaptar a um sistema vigente e excludente por natureza.

Eis um incômodo que se amontoa nas minhas entranhas. Eu não quero caber, assim como eu não quero comparar a arte produzida por outras mulheres ao que foi feito pelos supostos grandes mestres, verticalmente, numa escala de valores já estabelecida. Creio ser importante primeiramente analisar as questões trazidas por essas mulheres entre elas próprias, horizontalmente, para então, se for pertinente, contrapô-las a outros discursos com os quais dialogam.

Letícia Parente, Marca Registrada (Made in Brazil), 1975.

Vale observar que nada disso seria uma grande polêmica se não estivéssemos justamente tratando de um sistema desigual e hierárquico onde os que pertencem a ele são julgados como superiores e os excluídos como inferiores. Exemplo: filha se interessa por mecânica: excelente. Filho decide fazer aulas de balé: leva para a terapia. Uma artista mulher disputa com outros homens o seu lugar no mundo da arte e derruba as barreiras do sistema: essa mereceu entrar para a história. Outra artista diz “eu não me sinto parte disso”: ah, é porque a sua arte é menor, porque você é fraca, quer nos impedir de chegar lá. Resumindo: apoia as estruturas de poder: palmas. Opõe-se a elas: pedras.

Ser diverso é difícil (já contei que aqui em casa somos seis pessoas completamente diferentes tentando conviver pacificamente entre si, amparadas por dois gatos rabugentos e a fé no amor conjugal e fraterno?). E é difícil porque não há resposta pronta ou lugar seguro para pensar questões complexas. É preciso problematizá-las, olhar para as contradições e as disputas de poder que estão presentes nas ações mais triviais de nosso cotidiano. É chato e cansa pra burro, mas ainda é melhor do que dizer “venha, você é bem vindo para viver de acordo com as minhas regras”.

Ser diverso é também necessário. Porque se, por outro lado, pensarmos: ah, tanto faz, coloca qualquer coisa nessa história da arte aí, miçanga é tudo igual, é tudo de humanas. As vermelhas não são tão boas quanto as verdes ou as azuis? Então que diferença faz se alguma cor ficar de fora? Se as miçangas azuis são mais fortes para trabalhar e as vermelhas são ótimas cuidando dos filhos em casa e ainda deixam as verdes mais ricas e com mais tempo livre para pensar, bora tomar aquele cafezinho e continuar do jeito que está que está dando certo e daí nem precisamos nos preocupar com nada disso, não é mesmo?

Podemos também deslocar esse discurso para qualquer outra esfera pública e pensar: faz alguma diferença ter cientistas, pensadores e chefes de estado mulheres, negros, gays, ou indigenas (só para citar algumas combinações de cores possíveis)? Ou dá igual? Como seria o Brasil administrado por um Ailton Krenak ou uma Jacinda Ardern, com mais diversidade nas bancadas do congresso ou do senado?

Ah, mas não dá para comparar… Que importância tem a arte diante da política ou da ciência?

Veja, talvez a maioria das pessoas não pense muito sobre isso porque imagina a cultura visual como algo inofensivo, belo e bom, ou a arte como mais um espaço de divertimento na sociedade. No entanto, vivemos cercados por imagens, imersos e alimentados por um sistema de representação que existe justamente para reafirmar essas estruturas de poder. E adivinhe, mais uma vez invocando Nietzsche, “para quem” e “para que” as imagens na nossa cultura servem?

Pois é.

Se o pensamento que nos trouxe até aqui foi construído a partir da ideia de que só devemos seguir uma verdade (a de progresso), e essa verdade positivista claramente falhou como projeto de humanidade, trazendo-nos para esse buraco de onde mal conseguimos levantar, é preciso e urgente buscar outras respostas. Não apenas incluindo-as num discurso já estabelecido, o que sequer tem cabimento, mas antes compreendendo-as em suas reivindicações e naturezas próprias. Não se trata de vencer no jogo, mas de mudar as regras.

E se eu, mulher, artista, defendo a construção da minha própria história, é porque convoco também a sua e todas as outras para serem escritas ao lado dela, para que um dia, sim, possamos cruzá-las e alterná-las, formando não apenas um, mas vários colares. E que lindo dia esse será (viva o povo de humanas e suas miçangas).

Utopia que chama?

Você pode participar da construção dessa história colaborando com a campanha: https://benfeitoria.com/elasporelas.


Para ir além

O Fim da História da Arte, Hans Belting

Cultura e Representação, Stuart Hall

Why Have There Been No Great Women Artists?, Linda Nochlin

Sobre o/a autor/a

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