Enquanto tudo queima, eu canto

Qual o papel da arte em meio à escuridão? Qual o alcance da arte diante da violência instituída, da miséria, da doença, da guerra, ou mesmo da dor dos outros?

Tenho ouvido esse canto ecoar em mim (em nós?), nesse canto escuro que é (tem sido) simultaneamente coletivo e solitário. Qual o papel da arte em meio à escuridão? Denunciar? Combater? Qual o alcance da arte diante da violência instituída, da miséria, da doença, da guerra, ou mesmo da dor dos outros – sempre eles, distantes, como plasmou Sontag em seu texto –, mas que chega agora aqui debaixo da nossa porta, sub-reptícia como como uma enchente de verão que invade a nossa casa e leva tudo. E vem o repórter da televisão perguntar: e agora que perderam tudo, minha senhora, o que vão fazer?

Seria a arte capaz de nos devolver algo? Tenho buscado essa resposta.

Em São Paulo, onde estive recentemente visitando a última Bienal, pude ouvir um pouco desse canto. Não só no pavilhão do Ibirapuera, mas na garoa fina que me recebeu logo na chegada às 6 da manhã na saída do Tietê. E também nas ruas, abarrotadas de novos moradores desabrigados; na roupa de festa e maquiagem borrada das moças da noite que me acompanhavam cedo num pingado na padaria; nas centenas de vendedores ambulantes desempregados oferecendo quinquilharias na Paulista; no motorista de ônibus que veio da Bahia que odiava o frio e me contou a história de sua vida inteira em poucos minutos; na mãe, moradora de rua em uma barraca da Decathlon ao chamar a filha que brincava numa poça na calçada: “Jéssica, você esqueceu sua máscara!”

São tantas as máscaras que me pergunto, a cada dia: qual delas devemos esquecer e qual delas precisamos nos lembrar de vestir. Vestir a máscara certa e ajustá-la bem, para então lembrar que estamos mergulhados na lama até o pescoço. Cuidamos de nós primeiro, como manda a regra, esquecendo que máscaras de oxigênio certamente não têm caído sobre as cabeças de ninguém… Então, como respirar?

Tenho buscado esse ar.

Em muitas, se não todas, as últimas exposições que visitei, ouvi simultaneamente um canto de força e de lamento. Não há alegria na dor, eles nos lembram, mas há resistência naqueles que insistem em não morrer. “Ainda estamos aqui”, eles parecem nos dizer.

Há também luta naqueles que nos deixam. Não há desertores, porque não há para onde fugir.

Obras de Jaider Esbell cobertas em sinal de luto na 34.ª Bienal de São Paulo (fonte: bienal.org).

Sempre que eu vou a uma grande exposição, como a da Bienal, procuro fechar os olhos ao final e lembrar de apenas uma, para guardar aquele dia. A vídeo-instalação My Country is the Most Beautiful of all de Ana Adamović (1974, Belgrado, Sérvia) desta vez me habitou.

My Country is the Most Beautiful of all,  Ana Adamović (2011-13).

Ana viveu, na infância ou adolescência, a dissolução da República Socialista Federativa da Iugoslávia. A obra parte de uma imagem de um coral infantil, o Kolibri, fundado em 1963. O registro é de um concerto em Belgrado, em 1987, em que ex-membros do coro se uniram às crianças para cantar a música do título, que exalta a paisagem da primavera e do inverno e fala de glória e de heróis. Fazendo referência a esse momento que uniu no palco diferentes gerações do Kolibri, 24 anos mais tarde, Adamović reúne algumas das crianças de 1987 para cantar a mesma música na mesma cidade. Mas num país diferente, onde uma guerra recente deixara 130.000 mortos.

A Bienal de SP já se encerrou, mas em Curitiba, na recém inaugurada exposição do MAC, esse canto segue nos acompanhando. A exposição se divide em dois lugares, simultaneamente no MON e na sala Adalice Araújo (que fica no centro, bem pertinho da praça Tiradentes).

Das duas, me conectei com o trabalho de duas mulheres. Guita Soifer, com sua delicada materialização do tempo nas coisas.

Tempos transversos I, Guita Soifer (2008) (foto de meu arquivo).

E também com a opressão esculpida nos delicados pés de Maria Cheung que nos recebem na entrada da mostra no MON. Como caminhar apesar da dor? Até quando ela nos impedirá ou nos acompanhará?

Na próxima semana eu vou conversar com a Ana Rocha, curadora da mostra, em busca de mais respostas, ou talvez, apenas de ar.

Usem máscara.

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