Diante da tumba, eu mesma tombo

Em sua estreia como colunista do Plural, Nicole Lima fala sobre a experiência artística como um projeto para as pessoas

Dia desses, durante uma rotineira sessão de reclamações acerca das mazelas da vida de professora e artista, duas amigas sugeriram que eu “daria uma boa UX designer”. Como eu não conhecia o termo, fui pesquisar: “o(a) Designer UX (abreviação de User Experience ou ‘Experiência do Usuário’, em tradução literal) é responsável por garantir que o design projetado atenda a todas as necessidades dos usuários, garantindo sua satisfação”. Fiquei pensando: calculem eu, que crio minhoca em composteira pra não jogar lixo em aterro, trabalhando para convencer as pessoas de que consumir deve ser uma experiência agradável? Ou, para ficarmos no campo da arte, imaginem um curador pensando em como tornar mais agradável a experiência do usuário em um museu. Retirem da parede todos os quadros que atentem ao pudor, que aludam à morte, eliminem toda a dor, a guerra e a tristeza, cortem a nudez! Deixem apenas as paisagens idílicas, os corpos belos, vestidos e nas proporções corretas. Se eliminarmos o grito do Funk e os ruídos da Sagração da Primavera, o que nos resta?

Desisti da carreira sem começá-la, mas achei o termo interessante: “user experience designer”. Fiquei pensando que na arte, o artista, e principalmente o curador, é sempre uma espécie de UX designer. Pega a Lygia Clark ou o Hélio Oiticica, por exemplo: o que eles projetavam não eram as peças, propriamente ditas, mas as experiências: os bichos e os parangolés só ganham vida quando ativados pelo “usuário”. A diferença é que a arte, sobretudo a contemporânea, incorpora as experiências desagradáveis ao programa. Muitas vezes o objetivo é dar um soco no seu estômago, causar desconforto, angustiar. Isso explica o fato de muito pouca gente gostar de arte hoje em dia. Sim, você aí que está dizendo que gosta, é muito provável (e inclusive explicável) que não goste. Talvez você tente justificar o seu desconforto com um “Mas também, tem cada coisa, cruz credo” ou “Antigamente era mais bonito, ser artista não era pra qualquer um, tinha que ter um dom, tinha que estudar”. Mas o motivo geral é bem mais simples: aquela experiência não foi projetada para te agradar. Isso mesmo: não é para você gostar. Aliás, se você não gostou, ficou incomodado, pensando por dias, anos, mais tarde, está certinho. Talvez os catálogos e textos curatoriais devessem, inclusive, incluir a legenda: quem falou que eu vim aqui pra te agradar?

Se você está pensando que isso é coisa da arte contemporânea ou que a culpa é do PT, senta que lá vem história. Se empurrarmos a cadeira para trás para tentar localizar em que ponto o belo e o agradável deixaram de ser o último objetivo da arte, vamos encontrar que esse é um buraco bem mais fundo e bem mais antigo. Aliás, se eu fosse falar dos objetivos do belo na arte… mas deixo para uma próxima coluna, quem sabe. Mas vou falar dos buracos, calmaí.

Antes de pensar no feio, precisamos pensar no que e por que nos desagrada. Um exercício simples que eu fazia com meus alunos de Estética era pedir que pensassem em três coisas que considerassem muito feias. Vai, pensa aí. Pensou? Talvez você tenha visto corpos em decomposição, ou imaginado alguma forma degradante de velhice, ou, não sei, no que você pensou? Na sujeira do ralo da pia? Numa barata (viva ou morta)? Em partes “feias” do corpo, ou odores e fluidos corporais que tentamos esconder para fingir que não somos animais? Existe também, claro, o feio moral (temos muitos exemplos todos os dias nos jornais), mas, só por hoje, vamos nos ater ao que é físico. 

O que nos incomoda tanto a ponto de não suportarmos olhar? Um fio de cabelo na sua cabeça é bonito, no chão é feio. Uma unha longa na mão, bonita. Cortada, na pia do banheiro, feia. Eu cresci ouvindo (porque ver mesmo só pude bem mais tarde, adulta) que um corpo morto era algo feio: “uma imagem que a gente não quer carregar”. Por que viramos o rosto, tapamos o nariz, cobrimos os corpos com lençóis? E o que aconteceria se, de repente, ousássemos olhar? O que veríamos?

Em O Que Vemos, O Que Nos Olha, Didi-Huberman coloca uma questão parecida que lembra aquela ideia da caixa do carneiro do Pequeno Príncipe ou do Gato de Schrödinger. Diante de um prisma geométrico sólido, quando olhamos uma tumba, fechada, o que vemos? Todos vemos o túmulo, mas o que nos olha de volta, não é uma escolha, mas um acontecimento. Aqueles que veem apenas um volume pétreo, ignorando solenemente que ali dentro jaz um corpo em decomposição, estão no time dos pragmáticos e são minoria. Aqueles que enxergam uma tumba vazia, da qual o corpo teria sido levado aos céus por figuras angelicais, formam o grupo dos idealistas. Já os que, por sua vez, não podem deixar de ver ali dentro um corpo perecível em franca decomposição, constituem os realistas.

Pragmáticos, Idealistas e Realistas travaram suas batalhas também na arte. No século XVI, em plena Contrarreforma para reconquistar a fé nas figuras católicas, a arte Barroca foi incumbida de seduzir as ovelhas desgarradas pelo protestantismo. A dura tarefa foi, em parte, encabeçada por dois grandes mestres: Antonio Carracci e Michelangelo da Caravaggio. Além de uma diferença de estilo — um com tendências neoclássicas e outro vertendo para o naturalismo —, havia uma divisão radical de visões de mundo propostas por essas duas escolas barrocas. Enquanto Carraci e seus seguidores apontavam para uma visão transcendental da morte, que nos levaria à vida e juventude eternas no paraíso, Caravaggio colocava literalmente o dedo na ferida e apontava para a brutalidade da nossa natureza perecível.

A Incredulidade de São Tomé,  Caravaggio (1600).

Caravaggio frequentemente representava a si próprio em seus quadros, desde suas primeiras pinturas. Fosse em seu Pequeno Baco Doente, segurando uvas prestes a apodrecer, ou em seu Narciso espelhado no lago, Caravaggio não podia deixar de ver a sua mortalidade. Sua Medusa nos diz: um olhar pode matar (esse matou com certeza). Quando olhamos para o escudo pintado, que na verdade é o rosto do próprio Caravaggio, vemos o que a Medusa viu: sua sentença de morte refletida.

Medusa, Caravaggio (1597).

Se Caravaggio de muitas maneiras superou a escola de Caracci, não foi apenas por atributos técnicos ou pelas suas qualidades inconfundíveis de luz e sombra, mas por conseguir nos posicionar diante da crueza com que ele enfrentava a mortalidade do corpo. É isso que ele nos oferece. Sim, somos frágeis, muito frágeis, ele nos diz. E é desagradável sermos frágeis. Queremos ser sempre jovens, sempre belos e saudáveis. É feio, é triste sermos obrigados a adoecer, a perder entes queridos. Seja diante da cólera, da peste ou de um ínfimo vírus que hoje é nosso escudo de Perseu e nos reflete todos os dias. A morte é certa, rápida ou lenta, e não há garantias de que a transcenderemos. Mas estarmos reunidos diante da mesma angústia pode ser um consolo. Como colocou Didi-Huberman:

“Assim, diante da tumba, eu mesmo tombo, caio na angústia. E a angústia de olhar a fundo o lugar do que me olha, a angústia de ser lançado à questão de saber e de não saber o que vem a ser meu próprio corpo, entre sua capacidade de fazer volume e sua capacidade de se oferecer ao vazio, se abrir.”

Pequeno Baco Doente, Caravaggio (1593).

As uvas nas mãos do Pequeno Baco Doente e seu olhar não nos deixa dúvidas de que o plano de Caravaggio não era encantar, mas perturbar os “usuários” da fé católica. Diante de suas dezenas de mortes realisticamente encenadas em dramáticos palcos de luzes e sombras, encenamos também a nossa própria. Sua arte era para todos aqueles que partilham da mesma visão frágil e fétida que emerge das entranhas da tumba, e que com ele também tombam.


Para ir além

O Que Vemos, O Que Nos Olha, George Didi-Huberman. Editora 34, 264 págs. R$ 61,00.

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