Uma nação forjada na base do trabalho escravo

O Brasil parece estar no mesmo ciclo repetitivo secular desde que fomos um país escravocrata

À luz dos acontecimentos das últimas semanas, acredito ser seguro dizer que da maneira que este país está, não pode continuar. Não importa de que lado você esteja, e infelizmente estamos construindo lados dos mais antagônicos possíveis, não anda fácil para ninguém. Enquanto escrevo esse texto, o Brasil soma mais de quatrocentas mil pessoas mortas pela nossa já eterna pandemia do novo coronavírus. Na mesma semana, perdemos: ícones do entretenimento, a conta do número de escândalos políticos revelados pela última CPI, um pouco de nossa ternura com mais uma chacina carioca e também a chance de ter celebrado o dia do trabalho, ofuscado pelo pandemônio cotidiano desses nossos tempos e por ter desafortunadamente caído num sábado.

Porém, a data não pode passar em branco, especialmente agora e especialmente no Brasil. A comemoração do dia primeiro deste mês, maio, se presta a homenagear uma manifestação que começa através de uma greve por condições mais dignas de trabalho nos Estados Unidos e termina com o confronto com a polícia local, diversos feridos, presos e mortos. Na época, buscava-se por exemplo, diminuir a jornada de trabalho diária para oito horas, já que, em alguns casos, ela poderia chegar a até dezessete. A data comemorativa, oriunda do país do “Tio Sam”,  é celebrada ao redor do mundo e em muitos lugares ela é feriado. Por aqui não é diferente, nem em significância nem no calendário.

Outro grande importado americano de escala mundial são as grandes do fast food. Comida rápida, barata e de baixíssima qualidade, servida em tempo recorde devido a homogeneização de procedimentos, insumos e corpos, numas das experiência alimentícias mais pobres e condenáveis possíveis, inclusive sob diversos aspectos, que vão desde o sequestro do cliente ainda criança ao bombardeio exagerado de gorduras saturadas e açúcares em suas comidas. Não vou me prender muito debatendo a qualidade da comida, já que seus malefícios são ponto pacífico entre pesquisadores – para aqueles que acreditam neles. Quero focar num movimento muito mais afinado com o âmago das questões do nosso feriado pouco refletido, o dia do trabalho.

A alcunha de “McEscravo”, apesar do tom jocoso, para funcionários de uma certa rede de restaurantes de fast food americana que opera em larga escala no Brasil não aparenta ser um exagero. Em matéria do O Joio e o Trigo, “Jornadas longas e salários baixos: a vida dos funcionários do McDonald’s”, os repórteres esmiúçam denúncias e condenações por violações trabalhistas da empresa. Porém, não pense que o modelo é exclusividade americana, não. Por aqui também temos nossos representantes de fast food “made in USA” ,mas com tempero bem brasileiro, pois claro, este não poderia faltar.

Em entrevista para Rádio Jovem Pan em 2018, Alberto Saraiva, dono da maior rede de fast food árabe do mundo, com suas 430 lojas, a brasileiríssima Habib’s exortava a recém aprovada reforma trabalhista: “Essa reforma foi a melhor coisa que aconteceu no mundo. Era muito desproporcional. Tínhamos mais reclamações trabalhistas aqui que no mundo inteiro somado. A reforma dá mais equilíbrio. Ela trouxe competitividade ao país. Se o país for produtivo e gerar mais riqueza, vai ser bom para todo mundo! Só assim as 13 milhões de pessoas deixarão o desemprego. Não adianta limpar o nome e logo em seguida continuar com o problema. Temos que gerar emprego, riqueza, salários bons”… A reportagem continua sobre a entrevista: “Além desse ‘pensamento retrógrado’, o que impede o desenvolvimento do Brasil para ele é a corrupção. Segundo suas palavras, o país é como uma empresa que tem diretores que passam o dia inteiro pensando em meios para obter vantagem própria. Se não fosse por essa prática quase institucionalizada, nós teríamos uma das maiores nações do planeta.”

Concordo veementemente com Alberto, a corrupção em nosso país é endêmica e muito nociva às nossas relações sociais e políticas. No entanto, aparentemente, um ex-franqueado da rede discorda que ela seja exclusividade dos supostos “diretores do nosso país”. Em reportagem para o Portal UOL, Marcelo de Souza, 50 anos, relata que está processando a rede Habib’s pedindo uma indenização de R$ 1,990 milhão. A ação que tramita na 2.ª Vara Empresarial do Fórum Central Cível de São Paulo, segundo o site, traz a denúncia de que “as lojas Habib’s só dão lucro se negarem direitos trabalhistas básicos a boa parte de seus funcionários, se confiscarem os 10% que os clientes dão de gorjeta, se sonegarem impostos e se usarem produtos de qualidade inferior.”

Quem também anda em desacordo com as práticas moralizantes supostamente propagadas pelo CEO da companhia é o Ministério Público do Trabalho do estado de Sergipe, que ingressou com ação civil pública contra a empresa Habib´s instalada em um shopping na capital sergipana. Dentre as irregularidades que motivaram a ação estão: jornadas de até 14h sem pagamento correto de horas extras, fraude no controle de ponto, empregados sem carteira assinada e a não concessão de descanso semanal (dentro de sete dias). Os reclames do MPT vão de norte a sul do país. Aqui em Curitiba, a loja da rede no bairro Tarumã já teve de se comprometer a cumprir um acordo assinado com o MPT-PR e garantir a seus funcionários seus períodos de descanso previstos em lei.

O modelo de fast food é americano, mas o nosso tradicional refogado de cebola e alho traz seu dissabor único! Em um artigo aqui no Plural, Claudia Guadagnin nos traz os dados da situação atual empregatícia do Brasil: “Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a taxa média anual de desemprego no país é de 14,2%, o que representa mais de 14 milhões de pessoas à espera de um trabalho no Brasil. São mais de 33 milhões de pessoas sem carteira assinada e pelo menos 22 milhões que trabalham por conta própria.” Há um oceano azul de possibilidades exploratórias e prósperas por conta da oferta infinita de brasileiros necessitados e, no nosso exemplo, alguns de nossos empresários, chancelados pelo governo federal, parecem saber aproveitá-los muito bem.

Aquilo que não é dito não pode ser tratado e o Brasil parece estar no mesmo ciclo repetitivo secular desde que fomos um país escravocrata. Toda a exemplificação acima parece nada além de uma atualização de práticas perniciosas de muitos séculos. Há uma distinção de corpos inserida em um habitus que nunca foi discutido de fato pela maioria da população e portanto, jamais foi interrompido. Quem trabalha nos servindo, necessariamente não escapa dessa lógica antiga onde um é mais e o outro é menos. Ela é tão antiquada, irrefletida e arraigada que os anos sequer deram-se ao trabalho de trocar a cor da pele daqueles corpos que continuam a nos servir tais quais os das vítimas dos fatos geradores deste habitus, séculos atrás enquanto éramos colônia. Precisamos com urgência discutir trabalho e os efeitos de termos sido um país escravocrata.

Somos uma sociedade que chancela um salário mínimo miserável para que continuemos a ser servidos por uma população forçada tacitamente a ser menos. Em muitos casos, como os narrados nas experiências de funcionários de fast food, sequer o mínimo garantimos e, em troca de carboidratos baratos, nocivos à saúde e absolutamente indigestos, fechamos os olhos para a realidade daqueles que nos alimentam. Do outro lado da moeda, pelos mesmos motivos, outros brasileiros, que nos servem, ficam aprisionados a salários que não lhes permite sequer almejar outro futuro que não a comida do dia seguinte.

O dia do trabalho no Brasil tinha que ser todo dia. Somos uma nação forjada na base do trabalho escravo, incapaz de se libertar de seus grilhões. O trabalho deveria pautar quase todas as nossas discussões. Deveríamos proteger-nos, cobrar respeito e limites daqueles que perpetuam essa lógica. Devemos deixar de reproduzir desigualdades em todas as bases sociais. Ouso dizer que até somos República, mas enquanto reconhecermos diferenças entre corpos brasileiros, nunca seremos nação. A reflexão deve partir de nós com urgência e o consumo dado a quem nos respeita enquanto população como um todo. Não há mais espaço para uma lógica que possa destituir alguém da esperança em uma vida melhor.

Do jeito que está não dá mais!


Para ir além

Céline
Outro outono

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