Trabalhadores agonizam

Com a economia em derrocada e a reforma trabalhista de 2017, a informalidade explodiu no país

Para falar dos aplicativos de delivery nós vamos ter que voltar um pouco no tempo. O ano é 2015, vivíamos a pleno emprego, com uma taxa de desocupação de apenas 8% da PEA segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (Pnad) do IBGE. Milhões de empregos foram criados na época dado o ambiente que aliava economia vibrante, proteção de direitos fundamentais e incentivos à formalização de empregados nas empresas nacionais. É neste contexto que começam a surgir as primeiras empresas de contratação informal de serviços, como o Uber e o Ifood. No começo, uma boa opção para pessoas entrarem no mercado de trabalho, especialmente por conta da remuneração atrativa, mesmo com a boa oferta de empregos no país daqueles tempos.

Porém, os empresários de si mesmo daquela época, hoje contam uma outra história. Capturados pela promessa e incentivos de anos atrás, esses mesmos trabalhadores agonizam com a escolha que fizeram. Com a economia em derrocada e a reforma trabalhista de 2017, a informalidade explodiu no país. Hoje há pelo menos 34,7 milhões de pessoas trabalhando na informalidade, de acordo com o Pnad, são chocantes 40% do total da mão de obra em atividade e 14,8 milhões de desempregados – ou 14,7% – informados em dados de março de 2021, o maior contingente desde 2012.

Por conta deste mar de gente necessitada procurando o que fazer, o que antes era fonte de renda atraente, ao ponto de se deixarem de lado as garantias da CLT, hoje não dá mais para sequer garantir uma alimentação digna. A uberização destes “empregos” revela uma condição de extrema precarização trabalhista. Dentro do contexto atual, agravado pela pandemia, estes trabalhadores amargam perdas consideráveis aos seus “olherites”, contrariamente às horas de trabalho que agora parecem não ter mais fim. Movimentos de resistência entre esses profissionais se organizam mesmo sem muita exposição midiática e pedem por muito mais direitos do que os que são oferecidos, especialmente quando se comparados ao número de deveres.

Não faz muito tempo, esses entregadores bateram às portas da Câmara Federal exigindo condições menos insalubres de trabalho – dizer “boas” seria uma hipérbole exagerada. Na época, nossos agora indispensáveis motoboys ouviram as promessas de sempre de Maia e sua turma. Um ano se passou e a situação ainda é digna de pena. Salários baixíssimos, alimentação comprometida, horas intermináveis, estresse, alta exposição ao Covid-19, acidentes e toda uma celeuma de falta de dignidade permeia a vida destes motoristas.

Em entrevista recente, Arnaldo Bertolaccini, porta-voz do Ifood, declarou que o site defende que haja “uma regulamentação que garanta segurança, ganhos mínimos e proteção social ao entregador que trabalha com plataformas digitais sem comprometer a sua autonomia e liberdade de escolha ao exercer a atividade”. Progresso talvez? Vejamos. O presidente da companhia, Fabrício Bloisi, disse também em entrevista que “somos favoráveis à regulação que garanta melhores condições às pessoas. Só que o preço disso não pode ser travar ou matar a indústria. A lei tem de ser modernizada. Inovação exige flexibilidade” e completa dizendo que o Ifood vem conversando com o governo para que haja uma legislação que possibilite seguridade social e, ao mesmo tempo, flexibilidade.

E qual seria esse “viés liberal” ou entendimento de legislação que flexibilize, mas que não “trave a máquina”? Ora, para entender o que isso quer dizer, não precisamos sequer retornar a Brasília. No começo deste ano, a vereadora Noemia Rocha (MDB), aqui mesmo de Curitiba, apresentou um projeto de lei na câmara municipal que, entre outros, previa a instalação de pontos de apoio para subsidiar a atividade de entrega e transporte por aplicativo. Os pontos deveriam possuir: uma sala para apoio e descanso dos trabalhadores, com acesso à internet sem fio e pontos de recarga de celular gratuitos; chuveiros; vestiários; sanitários; espaço para refeição; espaço para estacionar bicicletas e motocicletas; ponto de espera para veículos de transporte individual privado de pequenas cargas, entre outros. O projeto sequer chegou a ser votado em plenário, pois foi arquivado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara que entendeu se tratar de matéria Trabalhista, de competência privativa de legislação pela Câmara Federal.

Entendimento não é lógico, deveria ser técnico mas é consenso. Portanto, ali já podemos ter uma amostra de como se entende o viés ao que o presidente do Ifood se referia. A vereadora mais votada da cidade, do Partido Novo, assumidamente neoliberal, Indiara Barbosa votou pelo arquivamento do projeto e na justificativa do seu voto disse que o encarecimento dos custos operacionais poderia ocasionar mais desemprego. Ora, vereadora, como alguém que nunca foi contratado pode ser demitido? A máquina que a vereadora teme travar é a líder do mercado, responsável por 60 milhões de entregas mensais e criou um banco para antecipar pagamentos a parceiros, por conta das perdas do setor de gastronomia, no valor de 12 bilhões de reais. Só em inovação o Ifood vai investir 800 milhões de reais esse ano. É claro, Indiara, 5 mil reais para manter um refeitório e um banheiro (que poderia ser rachado com outras empresas) é um problema grave com uma única solução possível: demitir.

Passando os argumentos neoliberais baratos, quem também jogou uma pá de terra no projeto foi o vereador Pastor Osias Moraes (Republicanos), presidente da CCJ e integrante da bancada do prefeito Rafael Greca. Homem de Deus que é, não poderia faltar com a verdade e admitiu ter se encontrado com representantes dos aplicativos – e não os trabalhadores – na ocasião da justificativa de seu voto. Por óbvio, o lobby recomendou o arquivamento do projeto e o vereador o acatou. Amém, Pastor! Projeto enterrado. Dois vereadores votaram contra o arquivamento, Renato Freitas (PT), mestre em Direito, e Dalton Borba (PDT), jurista. Especialistas que, ao contrário do homem de fé na Igreja e da jovem “Margaret Tchatcher”, se valeram da técnica para elaborar seu entendimento sobre o tema.

Portanto, não é uma questão da tecnologia estar nos empurrando para um futuro inevitável, o que estamos fazendo é uma escolha. Ou melhor, nossos representantes nas câmaras Brasil afora, insensíveis a trabalhadores cansados, estressados, sem direito a ir ao banheiro ou fazer uma refeição, fazem a escolha por nós. A Câmara de Curitiba poderia proativamente fazê-la de modo a levar em consideração os interesses dos trabalhadores e esperar que o Tribunal de Justiça do estado julgasse sua ineficácia, se inconstitucional fosse a matéria, mas não, protegeu o empresário, mesmo que dispusesse dos meios e ferramentas necessárias para proteger quem precisa.

Imersos nessa falácia neoliberal de engrandecimento da autonomia travestida de miséria, seguimos perdendo um pouco de nossa humanidade dia a dia na medida em que esta grave exploração de nossos iguais passa despercebida para muitos ou entendida como um custo humano de corpos descartáveis, inerente a nossa “economia”, para outros. Uma sociedade que permite isso, falha há muito tempo. E este é justamente o caso do Brasil com relação à sua força de trabalho, ainda que ela seja fundamental para um projeto decente de nação e para a sua própria sobrevivência de todo dia.

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