Realidade escamoteada

Os rótulos de diversos produtos, entre eles os já muito criticados ultraprocessados, são equivalentes às telas propagadoras de fake news

Muita informação, desinformação ou falta de informação tem lugar de destaque frente às preocupações pessoais e coletivas neste começo de século XXI. Todo o desenvolvimento tecnológico, nem sempre benéfico, traz consigo seus desafios, e os alertas para suas recentes mazelas, já passaram da academia para fontes bem mais diversas. Pouco tempo atrás, até o Papa Francisco, condenou veementemente o que chamou de “infodemia”, fenômeno que se espalha e confere, segundo ele, uma distorção da realidade, baseada no medo, informações falsas, inventadas e/ou supostamente científicas.

“Estar informado corretamente, ser ajudado a entender as situações com base em dados científicos, e não em notícias falsas, é um direito humano”,  e completa, categórico, o chefe de estado do Vaticano, “informações corretas devem ser garantidas sobretudo aos que têm menos, aos mais vulneráveis”

Para Francisco.

Como se não bastasse dúvidas sobre a vacinação, colocações políticas manipuladas e toda sorte de disseminação de preconceitos sem base justificáveis, um olhar mais atento também deixa claro que a “infodemia” a que se refere o Papa, transpassa as telas informáticas, e permeia nossa realidade de forma bem mais palpável. Não que seja novidade, mas corporações mal intencionadas, buscando lucro e benefícios a si próprias, também propagam informações falsas ou fantasiosas sobre aquilo que comemos e, seus efeitos, acabam por vezes sendo bastante letais.

Os rótulos de diversos produtos, entre eles os já muito criticados ultraprocessados, são, neste exemplo, equivalentes às telas propagadoras de fake news. Em meio a muita camuflagem e desinformação, esses produtos são consumidos sem a análise criteriosa necessária para tal, e, como amplamente sabido, são responsáveis por uma verdadeira epidemia silenciosa de doenças crônicas não contagiosas, responsáveis pela maioria das mortes ao redor de todo mundo, tal qual a diabetes, a obesidade e problemas coronários e relacionados a pressão sanguínea, só para citar alguns exemplos.

Em 2019, o portal O Joio e o Trigo produziu uma série sobre rótulos e os exemplos de desinformação encontrados foram muitos. Desde suplementação alimentar para crianças composta basicamente de açúcar – não estranha que ela seja usada para o ganho de peso dos pequenos – ao hambúrguer bovino composto por não mais de 4% da referida carne, passando pelos supostos “fit” e “saudáveis” biscoitos que, apesar da propaganda, têm açúcar, após a farinha, como o ingrediente mais usado em suas receitas. Essas informações todas até estão presentes nos respectivos rótulos, o problema é que, tal qual as fake news, esses produtos propagam uma realidade fantasiosa, quando não escamoteada, até para os olhos dos consumidores mais atentos.

Esta comunicação visual tem como órgão regulador no Brasil a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. Apesar dos recentes ataques e desmantelamentos promovidos pelo Executivo federal, o órgão aprovou, em 2020, uma nova diretiva para as embalagens, que entra em vigor ao final de 2022, no intuito de melhorar a clareza e a legibilidade das informações nutricionais presentes no rótulo dos alimentos e auxiliar o consumidor a realizar escolhas alimentares mais conscientes. Das novidades do projeto, a que mais se destaca é a Rotulagem Nutricional Frontal que consiste na fixação de símbolos na embalagem que esclareçam ao consumidor, de forma clara e simples, sobre o alto conteúdo de nutrientes que têm relevância para a saúde, tal quais os açúcares, gorduras saturadas e sódio. Boa notícia!

Cláudia Silvano, diretora do Procon-PR.

Porém, aliado ao tsunami corporativo que nos traga para esse consumo tão irrefletido, temos feito muito pouco da nossa parte. “Eu sempre fico em dúvida se o consumidor realmente lê as embalagens, a composição daquele produto, o prazo de validade… Fizemos uma pesquisa recente em relação a prazo de validade, que é uma informação super importante, e boa parte dos consumidores não atenta para essa data, que dirá para o restante”, me conta Claudia Silvano, professora de direito do consumidor, servidora pública e diretora do Procon-PR.

A advogada me diz que o momento pelo qual estamos passando é complicado, pois a já incipiente capacidade crítica de consumo que temos fica agravada por motivos contingentes que vieram junto com a pandemia e as crises institucionais inúmeras pelas quais estamos passando. “As pessoas estão desempregadas, a inflação está alta, houve muita perda de renda, então é difícil você nesse momento colocar como definidor, ou imaginar que o definidor, de uma compra seja a composição do produto, ou sua qualidade e não o preço em primeiro lugar”, completa a servidora.

Para Cláudia, a informação nas embalagens é ruim e pouco convidativa. “Eu acho que a informação nas embalagens deveria ser disposta de forma mais interessante para o consumidor, mais visível, para que ele pudesse ao menos se sentir estimulado a ler essas informações tão importantes”, avalia. A representante do PROCON-PR atenta, ainda, para o fato de que a desinformação pode ser responsável por acidentes de consumo, que são as situações em que o produto pode provocar danos diretos à vida, saúde ou segurança do consumidor. “A informação pode até estar ali mas é pequena, está ali mas não informa, não adverte. Por exemplo: o pessoal que tem alguma intolerância alimentar, a informação sobre a composição do produto deve estar presente de forma destacada. O destaque é o que vai fazer uma pessoa ter a condição de escolher aquele produto”, conclui.

Com relação a nossa falta de educação em consumo, a diretora olha de forma mais holística para o problema e identifica a falta de uma educação mais crítica de um modo geral, que nos ensine a questionar e descobrir”.

Na escola, quando falamos em elementos químicos, poderíamos utilizar os elementos da tabela periódica correlacionando-os com os produtos que as pessoas consomem, para que aquele conhecimento não se torne tão abstrato e o aluno consiga ver uma repercussão prática naquilo que ele está aprendendo. Se as pessoas não veem essa repercussão prática relativa ao conhecimento, fica difícil ele se tornar interessante.”

Cláudia Silvano, diretor do procon-PR.

Como bem disse Vossa Santidade, na mesma entrevista em que dera as declarações do começo do texto, “as notícias falsas devem ser refutadas, mas as pessoas devem sempre ser respeitadas porque muitas vezes aderem inconscientemente a elas”, não é só uma indisposição ou preguiça que faz com que nossos padrões de consumo sejam em muitos casos nocivos a nós mesmos. Há, por um lado, um esforço dramático em se produzir desinformação em troca de lucro e benefícios egoístas e, de outro, uma incompetência flagrante em se gerar cidadãos com pensamento crítico que possam não ceder aos desdizeres dos rótulos apelativos ou notícias falsas concernentes à vacina, preconceitos e mentiras políticas. Portanto, além de individualmente questionar, reclamar e reivindicar uma alimentação de qualidade e regras claras para as escolhas pessoais, precisamos de uma educação coletiva que crie um ambiente de cidadãos críticos e conscientes de seus direitos. Para vencermos a crise mundial de saúde pública causada pela má alimentação é fundamental que ambas frentes funcionem. Portanto, ainda que aparentemente a mundos de distância, escolher um pacote num supermercado e votar para o próximo presidente do Brasil, estão muito mais próximos do que se possa imaginar. 

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