Por uma culinária japonesa raiz

Sushis e outros pratos típicos do Japão são servidos no Brasil em versões americanizadas

Quando eu era criança, eu não fazia ideia do que era salmão. Estávamos lá na década de oitenta, época dos fiscais do Sarney e compras de mês. Nunquinha na minha vida havia visto um peixe alaranjado antes. Pois, quase quarenta anos se passaram e o dito peixe importado parece onipresente na nossa criativa (contém sarcasmo) mesa de classe média. Não sendo natural de nossas águas, e tendo dependido da abertura para importações na longínqua década de noventa, o peixe não poderia jamais ter aparecido na mesa de um pirralho no subúrbio carioca, não mesmo. Imagino que na de piás das bandas de cá também não. Pois bem, com todos os seus mais de sete mil quilômetros de costa, o Brasil não poderia estar melhor hoje em dia, quando consome em escalas galopantes o peixe que de toda essa extensão de mar não sai (contém mais sarcasmo ainda).

Na medida em que nos ficam mais claro os conceitos de apropriação cultural, deveríamos nos dar conta de que ao mesmo tempo em que engolimos toneladas de salmão – cozidos ou na forma de peixe cru –  estamos neste caso, provavelmente causando um grande desagravo à cultura nipônica e também, por meio destes mesmos hábitos colonizados de consumo, por comer um peixe que nem nosso é, promovendo mais um desequilíbrio natural e de saúde pela ingestão dessa proteína que de saudável não tem nada.

O salmão consumido no Brasil, produzido em cativeiro, vem majoritariamente do Chile, segundo maior produtor do mundo. Sendo uma espécie carnívora, precisa ser alimentado com outras variações de espécies a uma taxa nada sustentável, que pode chegar a cinco quilos de outros peixes para cada quilo de salmão produzido. Não só, mas também, os resíduos dos tanques são nocivos e desequilibram a fauna marinha onde estão instalados e a fuga de salmões desses viveiros pode significar o extermínio de espécies originárias inteiras consumidas por esses predadores vorazes. Como se não bastasse o risco ambiental, o salmão que consumimos, ao contrário do seu irmão original selvagem, é uma bomba de antibióticos, corantes, não apresentam as mesmas características nutricionais que seus pares livres e podem ainda conter substâncias cancerígenas.

Junto a mais essa nossa constante falha em não conhecer o que comemos está ainda o descaso com a cultura procedente de certos consumos. Aqui vale uma observação: não é defender uma tradição culinária purista que deva ser cegamente seguida, é desconsiderar aspectos culturais do prato em questão, tirando-o de contexto, com perdas culturais e na experiência de consumo.  Dito isso, ainda bem que os japoneses costumam ser discretos, porque pela quantidade de cream cheese que usamos para servir a “comida deles” por aqui, eles já deveriam nos ter declarado guerra faz tempo. 

“O que se faz aqui não é sushi. É uma cópia da cópia já americanizada do sushi.” Me conta a chef curitibana Michele Dupont, especialista em culinária japonesa. Além de suas consultorias, Michele dá aula sobre culinária nipônica e é estudiosa do assunto. Morou no Japão por uma temporada e lá aperfeiçoou suas técnicas e conhecimentos. “O que é servido aqui não tem nada a ver com o que é servido no Japão.” Completa.

Entretanto, o sushi tal como o conhecemos e é servido nos rodízios, portanto, é uma importação americana que foi abraçada por nós brasileiros como o original e exponenciada pela nossa cultura da fartura/excesso. O mesmo acontece com outros clichês culinários asiáticos, como por exemplo a culinária chinesa, conhecida principalmente por meio das cadeias de delivery mais famosas. “O yakisoba que nós comemos é uma fusão entre o japonês e o chinês com um toque já abrasilieirado.” Me conta a Michele. Ainda que a introdução do sushi americano tenha levado muita gente a se aproximar um pouco mais da milenar culinária nipônica, a chef pondera: “Aqui em Curitiba quase nenhuma casa serve o sushi com as técnicas japonesas originais. Dessa forma, o cliente acaba não conhecendo nada da cultura japonesa”. E aqui concordo em gênero, número e grau com a chef que esses fatores deveriam ser indissociáveis e a falta de coerência nos empobrece enquanto consumidores. A comida diz muito sobre a cultura e é uma das maneiras de reforçá-la e propagá-la. 

Justamente para disseminar mais da cultura que aprendeu em suas andanças pela terra do sol nascente, Michele Dupont organizará no final de julho um Circuito de Ramen em Curitiba, prato tradicional que consiste em uma espécie de caldo que acompanha legumes, carnes e massa. A previsão é que participem 10 estabelecimentos, servindo suas variações do prato a preço fixo. “A intenção é tornar o prato popular”, explica . A comida tem tudo para pegar por aqui, pois Curitiba tem o clima perfeito para abraçá-la com unhas e dentes.

Junto a Michele, há outros estabelecimentos oferecendo uma alternativa a nossa versão corrompida de sushi e mais próxima da rica gastronomia nipônica. Uma das dicas da chef foi para que eu visitasse o restaurante A Dona Ai. A proprietária do estabelecimento, japonesa radicada em Curitiba, faz pratos de sua gastronomia servidos no dia a dia, equivalentes ao nosso maravilhoso feijão com arroz. Visitei-a no dia 18 deste mês, junho, quando se comemora o dia da imigração japonesa ao Brasil, fazendo com que a passagem tivesse um significado especial na medida em que provava um autêntico banquete japonês no seu aconchegante restaurante.

Curitiba tem contado com a abertura de diversos “Izakayas”, bares de estilo japonês. Além das bebidas, estes bares se preocupam também em servir exemplares da cultura de gastronomia de bar nipônica num tipo de experiência mais autêntica que jamais será encontrado em um Jow, Califórnia ou Philadelphia rolls, impregnados em menus de vários restaurantes da capital. Estabelecimentos como o O.I.D.E, Izakaya Tanuki, Ichimon e outros prometem essa experiência mais autêntica em seus cardápios e no uso de técnicas originais.

É importante salientar no entanto que não é a fiel reprodução dos pratos japoneses que difere esses exemplos aos criticados anteriormente. Até porque esta reprodução é impossível dado o nosso terroir e ingredientes brazucas.

Aliás, a incorporação de ingredientes brasileiros à culinária japonesa é fruto do próprio processo de imigração ao Brasil iniciado no século XIX.  Alguns imigrantes, depois da segunda guerra mundial, se instalaram na Amazônia e lá chegando, por óbvio, tiveram muitas dificuldades em continuar seus costumes gastronômicos sem muitos dos ingredientes com os quais estavam acostumados. De acordo com estudos da pesquisadora Linda Midori Tsuji Nishikido, da Universidade de São Paulo (USP), que documentou os hábitos alimentares dos imigrantes japoneses no Amazonas entre 1953 e 1967, os imigrantes criaram uma verdadeira culinária cheia de significado na medida em que se estabeleciam e absorviam conhecimentos dos povos originários brasileiros e os incorporavam às suas receitas. Iguarias como sushi de feijão e shoyu de tucupi emergiram no cardápio mais autêntico e nipo-brasileiro possível.

O que quero dizer com isso é que a cultura de onde provêm esses pratos nos enriquece muito mais do que a adição indiscriminada de ingredientes ao peixe cru, servidos de qualquer maneira e fora de contexto. Além disso, tal qual os nipo-amazonenses, a absorção de insumos locais não faz nada além de enriquecer a experiência como um todo, rumo a criação de uma autêntica gastronômica nipo-brasileira e não uma cópia da cópia americanizada.

Imaginem a quantidade de alternativas que podem ser produzidas a partir das uniões das culturas caiçara, do interior paranaense e alternativas que a capital pode oferecer? Que venham mais Tonkotsu Ramen de porco moura, Udon Karê vegetariano de pinhão, sushi de marisco caiçara, sashimi de xaréu, bolinho de massa de farinha de mandioca ao invés do udon e porque não cataia no lugar do sake? Curitiba está com a faca e o peixe na mão para construir um circuito virtuoso e uma identidade nipo-brasileira única. Faço votos que os chefs da capital abracem essa ideia!

Arigatô, sayonara, menos cream cheese e viva a imigração japonesa!


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