O gigante tá de rivotril

Estabelecimentos transbordam pessoas para as ruas e a situação está dividindo opiniões

Salvem as mulheres e crianças, o curitibano resolveu ir para rua! Não, não por razões políticas, o gigante tá de rivotril até as tantas e não levanta mais, é só para comemorar. Pudera, são dois anos da mais claustrofóbica das rotinas. Se adultos estão que não se aguentam mais, os jovens estão bem difíceis de segurar. Os estabelecimentos transbordam pessoas para as ruas e a situação está dividindo opiniões. De um lado o setor mais sufocado pela pandemia, os bares, restaurantes e casas noturnas, querem tirar o atraso e compensar as perdas, do outro, o governo e uma parte da população querem proibir o consumo de álcool nas ruas da cidade.

Ainda que não haja projeto tramitando através da representação municipal, houve uma audiência pública marcada para que se pudesse ouvir as partes. A tônica do encontro pendeu mais para a regulamentação do que para a proibição do consumo de álcool nas ruas de Curitiba, porém, velhos hábitos da casta capital são difíceis de serem superados.

Vivemos afrouxamentos sistêmicos desde o último surto da variante Ômicron. A pandemia não acabou, mas já estamos em uma situação muitíssimo melhor do que a de antes. No entanto, para a secretária da Saúde de Curitiba, Márcia Huçulak, a proibição do consumo de bebidas alcoólicas nas ruas, adotada como exceção para o combate ao Covid, deveria se tornar permanente. “A gente deveria manter essa medida para sempre. Com todo respeito, o consumo de bebidas alcoólicas em vias públicas provoca aumento nos acidentes de trânsito, aumento da violência e isso gera outro tipo de morte, que não o da Covid. Nossos prontos-socorros ficam cheios muitas vezes de pessoas que brigam, que se esfaqueiam, que se dão tiro, que caem, que atropela alguém, porque consumiram bebida alcoólica. Do meu gosto, a gente nunca tiraria essa medida”, disse em declarações públicas recentes.

O que a secretária falha em atribuir de maneira coerente é o nexo causal entre o consumo da bebida nas ruas e o aumento de tais delitos. Nada impede que alguém que cometa crimes a partir do uso de substâncias entorpecentes, e não só o álcool, possa ter ingerido essas drogas no conforto do seu lar, dentro de um bar ou qualquer outro lugar onde se tenha dado o consumo, prévio à prática delituosa. Reforçando esse ponto de vista, Miguel Godoy, professor de direito constitucional da UFPR, nos explica que um eventual projeto de lei que restrinja o consumo de bebidas alcoólicas nas ruas padece de vícios. “É bom em intenção, mas parte de correlações não demonstradas, possivelmente inexistentes e que restringem liberdades que, via de regras, não são restringíveis, salvo demonstração de necessidade em contrário e proporcionalidade da medida. O que não se tem visto até aqui”, conclui.

Engrossando o caldo dos opositores às liberdades individuais, estiveram na audiência pública as presidentas dos Conselho Comunitários de Segurança (Consegs), do Mercês-Vista Alegre e do Centro Cívico. Elas alegam, através de testemunhos e vídeos, inúmeras situações de perturbação do sossego, e fazem as mesmas ilações sobre o consumo de álcool em vias públicas e o cometimento de crimes. Quem também concorda com a proibição é o capitão Ronaldo Goulart, da Polícia Militar, coordenador da Aifu (Ação Integrada de Fiscalização Urbana), que, na mesma oportunidade, declarou que a mencionada contravenção – perturbação do sossego – é hoje a maior fonte de acionamentos da população às forças militares de segurança.

A capitã responsável pelo policiamento na área central de Curitiba, Carolina Pauleto Ferraz Zancan, da 1ª Companhia da Polícia Militar, também é da opinião de que o álcool consumido nas ruas seja indutor de uma maior ocorrência de delitos, mesmo sem ter apresentado os dados que justificassem tal afirmativa, na reunião da Câmara de Vereadores. No entanto, a militar deixou claro que a sua posição não é favorável a proibição mas sim a regulamentação do consumo de bebidas, e fez algumas sugestões para tal que incluíam: limitação do horário de consumo de bebida alcoólica, a regularização do uso pelos bares das áreas externas (mediante alvará expedido pela prefeitura), a regulação das distribuidoras de bebidas, a realização de um convênio entre Município e Estado para efetivar as ações de fiscalização e a possibilidade da proibição da modalidade de venda de bebidas “no balcão” – para levar.

Com exceção do horário para consumo de álcool nas ruas e proibição da venda de bebidas no balcão, que podem ser entendidos como um atentado às liberdades individuais e o livre exercício de atividades econômicas, as sugestões são muito boas. Por exemplo, diferenciar bares e depósitos de bebidas, que operam na brecha contingente aberta pelo fluxo de pessoas nas ruas, não é só necessário mas urgente. Bares e restaurantes passam por um rigoroso processo de licenciamento, através de inúmeras agências, para funcionarem, além de possuírem custos infinitamente superiores às distribuidoras, caracterizando uma competição desleal entre empresas. Não há porque distribuidores atenderem clientes em seu balcão no mesmo horário que os bares, por exemplo. Uma boa regulamentação poderia começar por aí, diferenciando horários de funcionamento.

Outra boa ideia é a regularização do uso das calçadas pelos estabelecimentos, reconhecendo a própria via como aparelho público a receber consumidores. Além de ser uma medida já muito adotada em todo mundo, o poder público poderia se prontificar a oferecer banheiros e quem sabe até o espaço da rua, impedindo-a para carros, acomodando assim, toda a população frequentadora daquele espaço. Por outro lado, já pensando em maior regramento, caixas de som portáteis, cada vez mais acessíveis e potentes, trouxeram um desequilíbrio que a regulação jurídica ainda não conseguiu alcançar. Portanto, os inconvenientes dispositivos de som deveriam ser proibidos em espaço público a partir de certo horário. Se bares e outros lugares devem ter permissão especial para a emissão de ruído, não é justo que o cidadão o faça ao bel prazer.

Aproveitando o gancho relacionado ao barulho para outra sugestão, se a perturbação do silêncio é o maior problema de segurança pública da atualidade, seria interessante partir da própria força de segurança (ou dos convênios propostos pela capitã Carolina) uma maciça campanha de educação e conscientização desta população transeunte, sobre o ruído e perturbação da vizinhança. Não só isso, inúmeras outras campanhas poderiam ser anexadas a esta última: sobre o lixo – junto a ampliação da oferta de lixeiras – para reduzir o dano causado pela aglomeração de pessoas; ações preventivas e educacionais contra o consumo excessivo de álcool e seus perigos; entre diversas outras frentes educativas de interesse público. Além, é claro, da presença ostensiva da polícia em locais críticos, se essa for conveniente.

As ideias de mitigação são inúmeras e muitas foram inclusive apresentadas durante a audiência pública por donos de bares que estavam presentes. Uma coisa no entanto resta certa, a intenção de quem propõe o cerceamento de direitos é uma tentativa de se livrar da situação, sem reconhecê-la e encará-la. Quando se pretende criar uma lei mais rigorosa, suplantando a diversidade de leis já existentes para o mesmo fim, o que se busca são ferramentas para que se possam abandonar os contrapesos previamente instituídos pela legislação existente. Uma solução mais fácil, resoluta e autoritária.

Curitiba deveria deitar no divã e analisar a si própria. A antiga capital pacata, de poucos habitantes, que ainda permeia imaginários de cidade para alguns de seus moradores mais antigos, não existe mais, assim como muitos de seus velhos hábitos. Estamos falando de uma metrópole que deve se empenhar em organizar seus esforços para servir a população, mitigando problemas e propondo soluções. Ainda que algumas regras sejam bem-vindas, não se voltará a um passado, muitas vezes idealizado, de cidade pequena. O espaço público de uma grande cidade deve ser ocupado por seus habitantes, essa é sua função primordial. Cabe ao governo assumir suas responsabilidades e primeiramente cuidar desse transeunte e desse cidadão, ao invés de fomentar narrativas insustentáveis que proponham o seu sumiço.

Tá na hora da província debutar.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

O (des)encontro com Têmis

Têmis gostaria de ir ao encontro de Maria, uma jovem vítima de violência doméstica, mas o Brasil foi o grande responsável pelo desencontro

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima