Negócios que abraçam ideias autênticas

Engajamento do cliente pode definir o destino e a sobrevivência de um empreendimento

Eu tenho vários primos que trabalham no mesmo negócio que eu, acontece que quem tem o nome mais conhecido e mais engajamento em redes sociais sou eu. Nem digo que isso seja uma grande vantagem. Às vezes é melhor estar no lugar deles que acabam por não se incomodar tanto. Mas por que eu? Se eles também têm restaurantes que vão bem e provavelmente até ganham mais dinheiro fazendo seus negócios em silêncio.” Me relata Beto Madalosso em uma das grandes conversas que eu tive no começo do mês com inúmeros empreendedores curitibanos, de diferentes origens e ramos dentro da gastronomia. O que eles têm em comum é levar seus negócios de maneira a não caber nas caixas limitantes de um propósito que não o seu próprio. A autenticidade com que levam suas atividades lhes atravessa e se expressa inexoravelmente no produto de seu trabalho. Na coluna passada, descrevemos suas experiências, um pouco de suas histórias e deixamos no ar a dúvida: há lugar para essa conexão heterodoxa com clientes e com a comunidade em que se inserem essas iniciativas? Numa atmosfera de desconfianças e devassa – intencionada ou não – da vida pública, clientes e empresas se relacionam num tabuleiro completamente novo e aparentemente de regras bastante diferentes das que já houve. Na medida em que atravessamos a maior emergência sanitária que o mundo, e especialmente nosso país já viu, digna de muita preocupação e perdas, algumas experiências parecem oferecer um ponto de luz no fim do túnel desta cansativa caminhada trilhada desde 2020 por muitos empreendedores.

“Se posicionar dessa maneira acaba por nos tornar um formador de opinião, com um trânsito diferente na cena gastronômica. No final das contas isso agrega movimento. Eu acabo trazendo muita gente também pro meu negócio, mas de uma maneira um pouco diferente. Um restaurante que não tem um posicionamento, é um restaurante em que um cliente vai, come bem, cria uma lembrança daquela experiência e pode até chegar a ter uma relação afetiva com aquilo. Outra coisa é quando você tem um posicionamento, há outro tipo de cliente, um cliente que defende a sua marca, um fã engajado. Jamais pensei em falar de política buscando esse engajamento. Até porque minhas falas não são positivas, falar em desfavor do presidente é extremamente desgastante. Por outro lado, houve um movimento gerado ao meu redor que me coloca como uma espécie de porta voz dessa insatisfação. Às vezes, me chamam nas mesas, querem tirar foto, isso não existe com os meus primos!” E completa: “Na pandemia, falando de resultado financeiro mesmo, noto que o engajamento que as pessoas têm com a minha rede social dá um retorno muito grande ao meu negócio. O nosso delivery, quando comecei a falar dele na rede social, teve uma adesão tão grande que viramos a página do que antes foi um desafio. A pessoa vem interessada em saber o que eu estou falando de política e percebe: ‘puxa, ele tem um restaurante e coisa e tal’ e acaba comprando.” O propósito de criticar a posição sócio-política majoritária entre o status quo empresarial brasileiro, faz com que o dono do Madá e do Carlo Ristorante alce novos alcances de popularidade e êxito que talvez não seja sequer, de acordo com Beto, compartilhada pela sua tradicionalíssima família de restauranteurs, cujo nome está sem dúvidas entre os mais famosos da capital paranaense, quiçá de todo o estado.   

Os benefícios de uma conexão autêntica, que eleva o propósito de uma empresa para além da dedicação única e exclusiva ao lucro parece ter equipado outra iniciativa de ferramentas necessárias para vencer nossos complicados tempos. Rafael Suzuki, sócio proprietário da Flama Torras especiais, uma iniciativa que promove o consumo consciente de cafés especiais e atitudes humanizantes em toda a sua cadeia, me conta que a comunidade em seu entorno foi e tem sido fundamental desde o fatídico começo da pandemia do novo coronavírus. “Nós tivemos um resultado muito positivo dentro deste nicho em que trabalhamos. Tanto a cafeteria quanto a torrefação possuem uma comunidade que gravita em seu entorno por conta do nosso contato muito próximo com os clientes. Conseguimos criar uma comunidade que acredita no nosso trabalho. A cada dificuldade, eles estavam lá para nos ajudar ao longo do período da pandemia. Durante os primeiros 90 dias de pandemia, nós ficamos fechados e criamos um financiamento coletivo para captar receita antes e entregar produtos depois. Conseguimos sobreviver um certo tempo só com essa colaboração do financiamento coletivo e fizemos um post aberto para noticiar quanto havíamos captado durante aqueles primeiros 45 dias. Além de termos o trabalho do consumo consciente do café especial, do respeito às relações humanas e do posicionamento político e social, também temos uma questão forte de transparência para com o cliente. Queremos que ele saiba do resultado e da força que ele representa em cima da nossa coletividade. Desde o início da pandemia até hoje, a gente tem sempre recebido mensagens de apoio e, financeiramente, quem nos mantém, tanto a Flama quanto o Manifesto Café, são essas pessoas que acreditam na gente. Antes da pandemia conseguimos fomentar um trabalho muito forte com nosso público e isso reverteu-se em nossa sobrevivência neste período difícil. Foi determinante para nos mantermos até hoje. O Manifesto Café é uma das poucas (senão a única) cafeteria que ainda não abriu seu salão para atendimento presencial, estamos somente trabalhando com entregas e retirada no balcão.”

As duas iniciativas acima atuam dentro da gastronomia, com produtos diferentes mas não divergem em possuir uma característica que poderíamos chamar de “um propósito maior” (ou “Higher Purpose” em inglês). Seja elucidar a condição político-social brasileira ou atuar humanizando um nicho mais exclusivo do agronegócio, seus líderes transcendem a produção de dividendos para também atuar de forma sociorresponsável. Reparem, não se trata de caridade ou campanhas esporádicas, é um propósito que pauta inclusive intrinsecamente decisões e a arbitragem da própria condução do negócio. Milena Costa e Pedro Vieira, sócios proprietários do Ginger, nunca hesitaram neste sentido. “A gente fez a escolha por dois segmentos que não têm a valorização necessária no nosso país, mas nos eram extremamente importantes. A própria concepção do bar vem das artes, são indissociáveis. A gente entende que a experiência gastronômica tem um processo criativo muito próximo da arte. Nós gostamos de contar a história dos cocktails, gostaríamos que o clientes estivesse a par do que estamos fazendo. Temos uma pegada que participa o cliente no processo criativo, contando a história, cultura e reflexão sobre o que nós fazemos no ambiente gastronômico. Sim, nosso público responde muito bem à nossa proposta e está conosco por conta desta proposta. Por exemplo: criamos um cardápio novo com um cartunista local e o transformamos em quadros que foram vendidos para que a renda fosse revertida pro restaurante naquele mês. Os quadros foram quase todos vendidos.”

É claro que por si só, abraçar uma ideia autêntica, não faz com que por milagre todas as contas sejam pagas. Dentre todas as conversas, uma se apresentou como contraponto ao êxito aparentemente das demais. É importante salientar que a gestão em gastronomia continua se tratando de um negócio de enorme complexidade, dados todos os fatores que envolvem sua produção e rotinas diárias. Fica claro no discurso da sócia proprietária da Rua Pagu, Fabíola Nespolo, que a notória identificação de seus clientes com os valores professados pelo bar é motivo de orgulho, porém, por se tratar de um nicho específico e pequeno, além de reconhecer a urgência de adaptação pedida pelo momento, os resultados podem ficar aquém do esperado. “Quando a gente se coloca no lugar de casa para que essas pessoas possam viver livres no nosso espaço e professar esses valores, pressupomos que a via seria de mão dupla, porém não é exatamente o que acontece. Em agosto noticiamos a venda do espaço e temos um feedback gigantesco e muito bacana, ao ponto de nos movermos a uma retomada. Porém, percebemos que apesar do elogios e visualizações, isso não necessariamente se traduziu em pedidos. Para ser bastante franca, eu não trago uma perspectiva muito boa da rede de apoio, por outro lado, eu pondero que, dado estarmos em uma ‘bolha’, eu tenho que reconhecer que somos resistência e talvez todos nós estejamos enfrentando dificuldades muito semelhantes, principalmente de ordem financeira e econômica. Como essas pessoas vão consumir? Por outro lado, também estamos nos reposicionando em termos de serviços prestados e sabemos que temos algumas lacunas a preencher com relação aos nossos produtos entregues. Não conseguimos nos reinventar na rapidez que o momento pediu.”

Portanto, podemos depreender desta pequena pesquisa que uma camada a mais de complexidade na gestão de empreendimentos gastronômicos se instala nos dias de hoje. Engajamento autêntico com o cliente, pode definir o destino e a sobrevivência de um negócio, aparentemente mais do que nunca. Este último teste empírico imposto pela pandemia exorta o que pesquisadores americanos começam a se referir como “The Economics of Higher Purpose” (Economia do Propósito Maior – em tradução livre). Em seu artigo, “Higher Purpose, Incentives and Economic Performance”, que mais tarde viraria livro, o pesquisador Robert E. Quinn da Universidade de Michigan nos Estados Unidos, recorrente contribuidor na prestigiosa publicação “Harvard Business Review”, aborda o tema e cria um modelo matemático para tentar provar a tese dos ganhos em se adotar uma política autêntica de um propósito maior nas organizações. Ele conclui que há uma melhor performance econômica nos negócios que adotam esse tipo de abordagem e cita uma crescente bibliografia de outros pesquisadores que não só corroboram seu ponto, mas também expandem a gama de benefícios em se adotá-lo.

Em sua gênese, a corporação era uma comenda dada pelo governo para proteger iniciativas de particulares enquanto serviam ao interesse público. Parece que há uma brecha no futuro para que essa utilidade coletiva se repita como no passado, mas desta vez a comenda seria não governamental e sim pública. O aumento da consciência sobre o consumo gastronômico poderá fazer com que o cliente seja um agente ativo na mudança do entorno em que estão fixadas essas iniciativas. Não obstante, o compromisso com o “propósito maior” impulsiona as empresas a se livrarem do paradigma do lucro por si mesmo, que só se justifica numa sociedade de consumo inconsciente, e colaborarem de forma eficiente para a melhoria das relações humanas e sociais dentro do nosso corpo coletivo. Há luz no fim do túnel!


Para ir além

Cārtārescu
Peônias negras

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