Estamos todos exaustos

Nesta nossa realidade presente tão carente de humanidades, quando alguém expõe seu encontro com a própria vulnerabilidade, às custas da rejeição e prejuízos contingentes que possam vir a acometê-la, nos aproximamos na nossa condição de humano defeituoso e geramos uma experiência verdadeiramente autêntica

Não faz nem um mês que o nome de Paola Carosella apareceu nesta coluna, não obstante, a cozinheira e empresária terá de voltar a estas humildes páginas por conta de suas últimas postagens no Instagram. A chef personificou, por meio de seus últimos registros digitais, todo o contexto que pautou parte das discussões que tive com inúmeros profissionais da gastronomia nesta semana. Essas conversas, tão prolíferas, acabaram por virar um par de colunas onde se abordará o engajamento de clientes e marcas e se discutirá seus efeitos neste cenário tão destrutivo de pandemia. São histórias que inspiram e podem fomentar discussões sobre a maneira com que vemos a gestão de empreendimentos gastronômicos, nosso papel enquanto cidadãos e nossa própria experiência de consumo.

Antes que me perca nos assuntos, voltemos a Paola: para aqueles que estão fora dos seus quase quatro milhões e meio de seguidores e não o sabem, ela, nesta semana, atacou veementemente as mentiras implícitas contadas pelo lifestyle de influencers nas redes sociais. Tudo isso se deu em um efêmero stories que já se perdeu no vácuo digital – uma senhora pena. Porém, em um momento de autenticidade contínua e tom de desabafo, um de seus últimos posts, na mesma rede social, narra o quanto ela está – e estamos todos – exausta. Em uma parte se lê: “… Estou exausta. Exausta da hipocrisia, dos sommeliers da vida alheia, dos perfeitos que pregam lições de uma moral que não viram nem passar na esquina. Exausta das magras esqueléticas dando dica de dieta, dos milionários dando dica de poupança, das garotas de 23 anos vendendo cremes antirrugas para mulheres de 50 anos…”.

Muito longe de uma apresentação da própria vida de maneira idealizada, Paola nos toca, aqui em baixo, longe do panteão das celebridades. E sim, Paola, estamos todos exaustos, em especial das mentiras que nos são vendidas diariamente sobre vidas impossíveis que dizem ser as que devemos levar e consumir. Portanto, quando a chef se despe de seu traje de gala, conferido pela sua posição de celebridade, nos aproximamos dela. Assim como inúmeras das pessoas com quem conversei esta semana, ela não o faz para um fim específico, Paola o é e não poderia deixar de sê-lo. Nesta nossa realidade presente tão carente de humanidades, quando alguém expõe seu encontro com a própria vulnerabilidade, às custas da rejeição e prejuízos contingentes que possam vir a  acometê-la, nos aproximamos na nossa condição de humano defeituoso e geramos uma experiência verdadeiramente autêntica.

Portanto, ser autêntico, ou seja, estar em acordo com aquilo que se é, dentro de um ecossistema de negócios onde urge competir e comparar é um grande e corajoso feito. Não só pelo desafio em si, mas por conta da capacidade de engajamento real com o interlocutor, ou melhor, na construção de uma ligação autêntica com o cliente. Nos tempos em que vivemos de clientes céticos, bombardeio de informação e desinformação, não basta só fazer com que valores seus cheguem ao cliente, é imperativo propagá-los de maneira coerente permanentemente.

Todas as pessoas com quem conversei, a parte de trabalharem no segmento de gastronomia, não possuíam outras interseções aparentes, vieram de origens distintas e trabalham de fato em ramos distintos da alimentação, no entanto, todas tinham algo em comum. Ao serem perguntados: “você conseguiria não fazer desse jeito?”, todos responderam que “não”. São assim. Seus negócios são daquela maneira e não haveria negócio se não fosse do seu jeito. Não raramente ouvi: “É mais forte do que eu”.

Na volta ao Brasil depois de um período de estudos em artes visuais fora do país, Milena Costa e Pedro Vieira, sócios proprietários da galeria de arte Ponto de Fuga e do bar Ginger, decidiram aplicar tudo aquilo que aprenderam no exterior e se mantiveram firmes na proposta de dar lugar à arte através da gastronomia.“Quando a gente decidiu montar o Ginger, em 2016, eu tinha voltado de um doutorado sanduíche no exterior, o Pedro tinha feito mestrado na Espanha. Nós queríamos dar um retorno daquilo que nós tínhamos aprendido. Eu estudei muito com fomento público, né? Bolsas de estudos e dinheiro público. Era algo muito forte: criar e estar com arte. Quando fomos alugar o imóvel (onde hoje estão os empreendimentos), decidimos inclusive que a galeria teria o espaço maior do imóvel em comparação ao restaurante. Queríamos priorizar isso. Só depois surgiu a ideia do bar secreto que nos fez mais notórios na cidade. A nossa ideia é que as pessoas fruam arte antes de adentrar o espaço gastronômico, que segue sendo parte desta experiência, sendo assim surpreendidas”. Me conta a empresária.

Os sócios proprietários fizeram sua escolha indissociável de patrocinar arte na cidade através do bar e ela complementa: “Estabelecimentos Gastronômicos e as artes foram extremamente impactados e duramente prejudicados. Continuar com o espaço está sendo muito complexo, porém, ao mesmo tempo, é isso que nos deixa forte e com vontade de seguir. Toda vez que pensamos em desistir e que não haja saída, lembramos do papel que nosso espaço tem junto a cidade no que tange a questão de fomento às artes.  O Ginger é o patrocinador direto da Ponto de Fuga e viabiliza suas exposições.”

A autenticidade tem seu preço e isso é o que vai fazê-la se diferenciar de campanhas publicitárias talhadas especificamente para fazer com que empresas pareçam o que não são. Autenticidade é esse mergulho na vulnerabilidade potencial atrelada a um certo posicionamento e característica. E disso, Fabíola Nespolo, sócia-proprietária da Rua Pagu, que recentemente apareceu por essas páginas por haver sido vítima de um ataque misógino, entende bem: “Em primeiro lugar, é muito claro que a Rua Pagu tem um posicionamento político, há bandeiras que ela levanta, somos um espaço cultural também, que apoia a música brasileira, posições políticas de esquerda, feministas e queremos dar acesso ao máximo de pessoas possível para criar um espaço democrático. O público é muito plural aqui: de crianças a idosos, famílias, público LGBTQI+. Nós percebemos que as pessoas abraçaram o espaço sobretudo por se identificarem com esses valores e posicionamentos. É muito claro e muito forte em tudo que nós fazemos. A gente tem certeza que todo o público que conquistamos desde que abrimos nosso espaço, é uma consequência desses valores. Por outro lado, eu chamo nosso posicionamento de bolha, pois é um mundo à parte. A sociedade que a gente vive é muito conservadora, radical  e doutrinadora dos bons costumes e quando encontramos esses valores, parece que encontramos nosso lugar no mundo e isso nos dá uma sensação de conforto muito grande”.

Foto: Pexels.

Abaixo de bandeiras correlatas, muito engajamento em pautas humanistas e humanizadoras, está também a FLAMA Torras Especiais. Seu sócio-proprietário, Rafael Suzuki, compartilha qual é o mundo na produção de cafés especiais em que eles acreditam: “A Flama Torras Especiais nasceu de dois projetos que são o Manifesto Café e o Projeto Consolida. Um representa uma cafeteria com a proposta de trabalhar o café da forma mais humana possível, respeitar as relações humanas e o processo do café especial desde a roça até o serviço. O Projeto Consolida trabalhava ações afirmativas voltadas para mulheres dentro da cadeia do Café Especial: desde a arte, passando pela produção e todos os processos eram feitos por mulheres, para mostrar que no meio do café não havia muita visibilidade para elas. A Flama veio da junção destas duas ideias. Flama: chama e flâmula, dado as bandeiras defendidas pelo projeto que incluem o respeito ao agricultor, à roça, às mulheres e todos os processos que caibam dentro deste escopo. Por termos esse posicionamento político bem definido, absorvemos clientes que tenham a mesma ideologia e simpatizam com o consumo mais consciente, sustentável e que respeite as relações humanas. Trabalhamos com agricultura familiar, pequenos e no máximo médio produtores, produtoras mulheres e estão excluídos latifundiários, além de manter altos índices de preservação ambiental durante o processo de torra do café, gerando o menor impacto possível”.

Quebrando tabus e muitas vezes em desacordo com o posicionamento neutro dos patriarcas, Beto Madalosso, proprietário do Mada Pizza e Vinho e do restaurante Carlo, de sobrenome que dispensa apresentações em Curitiba, reflete sobre a maneira com que de uns anos para cá, resolveu tornar pública suas predileções políticas, indo em desacordo até com a tradição da casa Madalosso de agradar a gregos e troianos: “É Tabu falar de política. Já ouvi muitas vezes: “você é empresário não deveria falar de política”,  “comerciante não pode falar de política”. Eu vejo que nos bastidores todo mundo fala de política dentro dos seus espaços seguros da casa, do clube, do grupo do whatsapp. Todos têm opinião política e muitos as têm muito fortes. A política nos permeia o tempo todo e nos causa reação mas é tabu. Não sei se seria melhor ou pior as pessoas falarem de política tendo negócios. Aparentemente nos dias de hoje a política está muito mais presente e permeada na sociedade, está presente em todos os locais, principalmente nos meios digitais. E aparentemente, por mais que tenhamos não só mais informação quanto acesso a ela, o debate político ficou mais pobre. Dito isso, eu não sei se o que eu estou fazendo é bom, mas sei que eu não consigo controlá-lo. Eu falo sobre esse assunto porque é mais forte do que eu. Se minha razão controlasse minha emoção, acho que não falaria sobre política. Eu gerei muita antipatia”.

A antipatia gerada por Beto é principalmente proveniente do seu posicionamento em desfavor do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), o que, de certa forma, rompe com o status quo nacional empresarial que, em teoria, é mais alinhado com as ideias neoliberais representadas pelo presidente e seu cunho ideológico: “Faz mais de dez anos que eu falo de política. Minha opinião veio se alterando no decorrer deste tempo. Meu discurso era muito próximo ao senso comum empresarial pois a minha história vem daí: escola particular, família de empresários, etc..  E essa opinião, que agora vejo ser rasa, ainda é compartilhada por muitas pessoas. Minha opinião mudou muito depois que eu percebi que o mundo não gira em volta do meu restaurante. Comecei a me manifestar mais. Hoje o nosso presidente é contra a política e isso o faz ser um desastre completo. Tento expor isso e falar para essa pessoa considerada “de bem”, que é o eleitor do Bolsonaro. E quem são eles em Curitiba? As pessoas que eu convivo, meus amigos, clientes, amigos de escola, faculdade e colegas empresários. Bater no presidente é indiretamente bater em um monte de gente que adora ele e também clientes e seguidores. Me ameaçam, dizem que vão boicotar meu restaurante… Mesmo assim, eu tento falar desse cara e para esse cara (cidadão de “bem”), o cara que concorda com o senso comum da retórica empresarial que o neoliberalismo bolsonariano representa. Esse cara que não enxerga seus privilégios e não têm consciência de classe, achando-se muitas vezes o salvador da Pátria pois gera meia dúzia de empregos e sequer se vê igual a seus funcionários que levam seu negócio nas costas juntos com ele.”

Esses são exemplos de empresários que vivem em seus negócios sua proposta de autenticidade. Muitos inclusive, movidos por uma ideal maior, abraçam mais do que simplesmente vender pizzas ou drinks, eles se mostram para o cliente inteiros, mergulhados naquilo que acreditam.  O cliente do dia de hoje não é mais tão vítima inocente da publicidade quanto já fomos, ele acompanha os empresários no apagar das luzes, nas postagens pessoais, na conduta pública e são muito mais acostumados a fazer pesquisa sobre os serviços do que jamais o foram. Nunca, inclusive, estivemos mais descrentes. A pesquisa  2018 Edelman Trust Barometer, sugere que há uma erosão na confiança em nossas instituições, não só corporações mas também na mídia, no governo e organizações sem fins lucrativos em vários mercados globais. De acordo com a Edelman, só 52% dos entrevistados globalmente confiam em empresas. Estes dados foram publicados por David Goldsmith na sua coluna para a revista Forbes em 2019.

Então, afinal, vale a pena ser autêntico? Vale a pena conduzir os negócios fiéis àquilo que se é? Como funciona o engajamento dos clientes durante a pandemia?

Essas e outras perguntas, vamos tentar responder na continuação. Até a próxima coluna!


Para ir além

Império dos segundos

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima