Curitiba não tem mar nem bar

O fato é que na civilização ocidental o bar se presta ao povo e é oriundo do povo

No último sábado, parecia ter voltado no tempo. Tive uma sensação meio que de saudades ao revés. Aliás, seria ótimo se houvesse uma palavra na nossa língua que fosse o exato oposto de saudades, pois foi o que eu senti, ao invés de conforto nostálgico, próprios da palavra, frustração e negação. Penso comigo: “putz, ainda nisso” e abro uma garrafa de vinho para me consolar enquanto foco no ragu de linguiça blumenau que estou cozinhando. É lockdown e cá estou em casa de novo, ganhando calorias que minhas calças não me deixariam negar e dando minhas bebericadas. 

Sou um bebedor social em condições normais, talvez muito social de vez em quando, confesso (e talvez nosso socialmente aceitável não seja tão aceitável assim, não é? Mas isso é papo para outro momento), mas, de qualquer forma, meu consumo etílico nunca foi tão baixo quanto tem sido durante a pandemia. Calma, este texto não vai ser sobre a glamourização do alcoolismo, já temos a música sertaneja contemporânea para isso. Estas linhas são sobre a saudade que tenho de sentar num bar – e o que para mim ele representa.

Eu amo ir a bares. Experimentar coisas novas, comidas de boteco, ver gente indo e vindo, para mim é um dos maiores prazeres da vida. Já fechei negócio no bar, já estudei no bar, já paquerei, já dei vexame e na condição de ex-fumante, conheci muita gente engraçada nos fumódromos por aí. Os não fumantes que me perdoem mas a melhor parte da “festa” é sempre o fumódromo! Enfim, às vezes é por conta da frequência, por conta do cardápio, da proximidade da minha casa e, na maioria esmagadora das vezes, é por conta dos amigos. Penso nessa grave crise de faltas e ausências que estamos vivendo enquanto encho a minha taça e mexo meu ragu.

Veja bem, não sou um rapaz de vinte anos na flor da idade que aguentaria depois do bar, uma boate e um after. Tenho quase quarenta e ressacas catastróficas com consumo moderado de álcool, durmo relativamente cedo e preciso descansar do trabalho da semana que geralmente é pesado. O consumo no bar para mim é subjetivo: é sobre encontros, acolhimento, é sobre humor, é sobre conseguir romper os diques mentais saturados que represam nossos problemas e os fazem pesar. É na partilha que vemos o quanto somos simplórios humanos e é no partilhar que encontramos conforto. Como disse o jornalista “Nenel” de Belo Horizonte, mais conhecido pela conta do Instagram, @baixagastronomia: “O balcão é a alma do botequim. É nele que a vida acontece. O balcão é o divã do povo! É local de reflexão e contemplação, onde se comemora as vitórias e onde se digere as derrotas da vida”.

Um mais cético pode até pensar que há um exagero nessas definições e o enviesamento de um fã. Pode haver, é claro, mas também há evidências para se pensar o bar como uma parte importante da nossa cultura civilizatória ocidental. Vou adicionando mais ingredientes ao meu ragu e me lembro que o termo “Pub”, que designa bares de estilo britânico, na verdade é uma abreviação para “Public House” (ou “Casa Pública”) e essas datam de séculos atrás. Por decreto real, elas deveriam servir comida, acomodação e consumo de bebidas para quem quer que fosse capaz de pagar pelos serviços. Também serviam como lugares para deliberação política e o são até hoje em muitos cantos da ilha europeia. Mais contemporâneo e nacional, o que seria do samba e da bossa nova sem o guarda-chuva congregador do bar? Reparem: a formação de uma banda que toca samba é literalmente em volta de uma mesa. Quantas partidas de futebol e torcidas variadas já se deram em bares? Quantos aniversários, festas e memórias foram criadas? Quantas pautas jornalísticas? Quanta vida?

O fato é que na civilização ocidental o bar se presta ao povo e é oriundo do povo. Somente para ratificar a regra, há uma ou outra grande rede de bares por aí, de resto o bar tem um dono, gente conhecida, pessoa física e, geralmente, ele é o Fulano Dono do Bar. Sujeito que teve um sonho, uma ideia, ou lhe faltava outra vocação e acabou por abrir um bar. Em alguns casos, seu Fulano e o bar são quase indissociáveis. Psicólogo, sommelier, administrador, empreendedor e, principalmente, gente comum como eu e você! O bar é do povo para o povo!

Na medida que o ragu encorpa e seu aroma toma toda a minha casa, reflito, e para aumentar a minha frustração de mais um sábado em casa, vejo que a narrativa, um ano depois do começo da maior crise sanitária que já vivemos, ainda é a mesma: os vetores do vírus e contaminação se dão, majoritariamente, aos olhos dos governantes, por meio dos jovens que aglomeram em bares, boates e festas clandestinas. Fico perplexo enquanto continuo mexendo pro ragu não grudar no fundo da panela. 

Será que há um grande conluio de empresários a fim de exterminar seus próprios clientes? Será que vivemos tempos de almas devassas e vírus que trazem punição divina? Será que o vírus não faz crossfit? Será que um ano depois, a escalada galopante de casos é ainda oriunda de bares que cumprem com o distanciamento social e funcionam muito abaixo da capacidade e do horário?

“Toque de recolher entre oito e cinco da manhã”. Ou seja, enquanto há a obrigação da tutela de regulação do Estado, não há qualquer risco de contágio? Nem nas empresas, nem em ônibus, nem em supermercados e shoppings centers que funcionam quase que normalmente? O culpado são os vilões: os bares e seus frequentadores, que ficam abertos como muito das seis às dez da noite? Não me parece plausível.

Houve equívocos e abusos em diversos bares, é claro, e todos devem ser punidos exemplarmente. Não se trata de solo livre de contágio, por óbvio, mas há um discurso em prática. Um discurso moralista, reacionário e injusto que faz dos bares algozes, ainda que estejam muitos de portas fechadas para sempre e outros respirando por aparelhos, sem qualquer contrapartida do governo – que continua os obrigando a fechar. É lógico que no meio da insanidade que estamos vivendo nesta semana, todos devemos ficar em casa, mas é lógico também que privar várias pessoas do seu ganha pão por mais de um ano, sem contrapartida, não é justo sob nenhum aspecto.

Este discurso conhecido e de fácil aceitação, que vilanifica o que é popular, jogando semelhantes uns contra os outros para mascarar verdadeiros culpados, não é estranho ao nosso país. E, infelizmente, continua-se batendo na mesma tecla, obrigando ao seu Fulano fazer das tripas coração para manter-se aberto, enquanto pouco fazem aqueles que foram eleitos para fazer pelo povo e para o povo.

Sirvo minha última taça já à mesa, termino de comer e cozinheiro que sou, acho que faltou um toquinho disso ou daquilo outro no ragu. Guardo o resto da garrafa, lavo as louças e vou dormir na esperança de que possamos voltar aos balcões dessa vida o mais rápido possível. O bar faz muita falta!


Para ir além

Um café com caramelo no multiespaço criativo da Rua São Francisco

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima