Comida para o fim de uma pandemia (II)

A jornalista Jussara Voss aposta na diminuição do consumo de carne animal

Em um fim de tarde, num bom café, conheci a Jussara Voss. Deselegante que sou, chego quase dez minutos atrasado, ela já me esperava tomando seu chá e com o sorriso de quem me ganha em elegância por umas dez encarnações de vantagem. Pedi meu café coado, meu croissant com geleia e tratei de manter minha boca ocupada para ouvir sem interrupções tudo que esta incrível jornalista, curadora de conteúdo, blogueira e entusiasta da boa comida tinha a dizer. Nossa conversa foi sobre alta gastronomia, cozinha de vanguarda e o que esperar deste universo, distante para muitos mas influente para todos, daqui para frente.

A primeira coisa que a jornalista me explica é que, se estamos falando de vanguarda, deveríamos olhar para o ranking dos 50 Melhores Restaurantes do Mundo (The World’s 50 Best Restaurants). O ranking, autoexplicativo, é compilado por um seleto júri e nos dá o norte sobre tendências da haute cuisine ao redor do mundo. Um primeiro movimento que assinala a minha entrevistada é sobre o Chef René Redzepi do renomadíssimo restaurante Noma, campeão deste ano de 2021, eleito múltiplas vezes o melhor do mundo, estando entre os 5 primeiros desde 2009. “Se você vir o post que ele, René, fez, logo em seguida ao prêmio, ele diz algo como: as pessoas me perguntam qual é o segredo (para ser bem sucedido), e ele põe a foto da equipe. Note, as pessoas daqui mesmo de Curitiba já estão se alinhando com esse discurso.” Observa, Jussara.

A cozinha como a obra de um grupo é algo muito salientado pela minha entrevistada. Ela identifica uma evolução em três tempos, culminando com essa equipe e escopo de trabalho mais integrados e integrantes. “A gente passou de uma fase em que o cozinheiro não aparecia, era mais o dono do restaurante. O cozinheiro ficava se lascando lá na cozinha (risos). Daí a gente entra na fase do cozinheiro superstar, e ele, por sorte, vê que por conta desse status, deveria fazer um algo mais, entrar um pouco nos problemas do meio onde ele está inserido, seja da alimentação, seja da equipe, seja da sustentabilidade e etc… Então, se você reparar o Lenin (Lenin Palhano – Restaurante Obst), a Manu (Manu Buffara – Restaurante Manu), o Atala (Alex Atala – Restaurante D.O.M.), todos estão falando que o mérito não é seu e sim das suas equipes. São equipes menores, mas são equipes que entendem seu papel. Já aquele que está à frente desta equipe, também entende seus problemas. É uma cozinha mais quieta, harmônica, porque está mais entrosada. Não é uma hierarquia movida a gritos. Tudo isso já passou.”

Outro movimento sinalizado por Jussara, é a integração dentro da cozinha se alastrando para o resto da cadeia fora das paredes dos restaurantes. Não só, mas também, há uma mudança de escala no trabalho antes dominado pela indústria. Essa, que antes era um monólito que se interpunha às conexões possíveis, hoje está sendo substituída por pequenos atores e processos intensivos de agregação de valor. A consultora me explica que pequenas empresas, startups, estão integrando o processo no lugar da indústria alimentícia com uma visão, ainda que comercial, de extrema valorização da produção. Esses empreendedores vão até o pequeno produtor, especificam condições de criação mais orgânicas para seus animais – como criá-los soltos e sem ração industrializada, por exemplo – e levam a sua produção direto para as cozinhas dos melhores restaurantes e chefs do Brasil, possibilitando que esse criador seja inclusive melhor remunerado. “Veja, é uma startup e seu diferencial é fazer a ponte através de um aplicativo que recebe o pedido e atende a esse cliente melhor e em menor tempo. Então é isso, né? É você fazer a valorização dessa cadeia toda. A gente começou falando da valorização do chef, que foi para equipe, que foi pro produtor e agora você vai chegando até o próprio animal.”

Outra tendência na qual aposta Jussara, é a diminuição do consumo de carne animal vindo para ficar. “Você começa a ver que vegano não é uma brincadeira quando um chef e um restaurante de Nova Iorque, o Eleven Madison Park (que já foi considerado o melhor do mundo na lista dos 50 melhores), um restaurante clássico, com fila de espera e menu de trezentos dólares, viram vegetarianos. A gente vai deixar de comer carne? Não, não vai. Mas a gente pode diminuir sim. Isso é tendência”. Inclusive, a minha entrevistada já tem um palpite sobre a cozinha que vai nos guiar pelo caminho. “A gente vai de ondas, né? Já foi Peru, já foi México, Japão, etc. Agora eu acredito que vamos abraçar a cozinha do Levante”.

O Levante se refere a países do leste Mediterrâneo, como Chipre, Jordânia, Líbano, Israel, Iraque, Síria e Egito e partes da Turquia. Sua cozinha usa muitos vegetais, leguminosas, temperos aromáticos e especiarias como o za’atar, sumac e cardamomo. Os pratos são leves e ótimos para compartilhar. O seu menu étnico é baseado em saberes e sabores centenários destes povos que dividem uma história e origem comuns. Ingredientes clássicos de referências mediterrâneas e árabes, para simplificar, são estrelas nos pratos da região. Grão-de-bico, tahine, halloumi, berinjela, pimentão, hortelã, iogurte, limão e outros, se misturam numa cozinha saudável, riquíssima em sabor e perfeita para aqueles que decidiram tirar ou diminuir o consumo de carne dos seus pratos.

Jussara vê a sustentabilidade, a diminuição do consumo de carne, a equipe de cozinha integrada, o respeito à sazonalidade, à organicidade e o foco na produção alimentícia intensiva voltada para o sabor, como pilares para a alta cozinha daqui por diante. Juntos concordamos que, como consumidores, fomos longe demais. A alta gastronomia nesse sentido parece estar conectada com as necessidades latentes do desgastado planeta em que vivemos. Ainda que seja um mercado de consumo de luxo, seus protagonistas visionários, estão trazendo para a cozinha os problemas que nos rodeiam e propondo soluções para aliviar seus impactos.

Os efeitos diretos estão ainda longe de nós, dado o público de alto poder aquisitivo a que a haute cuisine se dedica e o mercado de luxo onde se situa, porém, essas criações de vanguarda, são nortes para o mercado, chefs, aspirantes, apreciadores e pessoas diversas envolvidas no mundo da gastronomia. Se algo nos pode trazer conforto neste cenário pós-pandêmico, é saber que, no panteon gastronômico, as soluções para um consumo mais responsável e humano já estão saindo do forno.

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