American way of life com café

Os preços na Starbucks não são uma pechincha, mas as filas têm se mantido formadas até mesmo quando o shopping fecha as portas

Um italiano e um carioca entram numa cafeteria e pedem um espresso. Poderia ser o começo de uma piada ruim, mas foi exatamente o que eu e o Andrea Torrente fizemos na sexta-feira (22), depois de mofar numa fila de 40 minutos, lotada de fãs e curiosos, e disputar uma mesa para nos acomodarmos. Dois espressos, um cookie e muffin, foram as escolhas na recém-inaugurada cafeteria do Shopping Mueller, a Starbucks. Apesar de já estar em território nacional há 15 anos, em uma cidade referência e apaixonada por café como Curitiba, a estreia de uma loja da maior cafeteria do mundo daria o que falar e deu.

A Starbucks nasceu no estado de Washington, nos Estados Unidos, em 1971, mais especificamente no berço do grunge, Seattle. Apesar da veia underground musical da cidade, que hoje abriga o quartel general da empresa, a cafeteria local cresceu até se tornar um gigante mainstream mundial com mais de 32 mil lojas, espalhadas por todo o globo, sendo mais de 18 mil nas Américas. Possui aproximadamente 350 mil funcionários e faturamento anual superior a 26 bilhões de dólares. Um verdadeiro godzilla do café, expoente da geração yuppie e do soft power americano que nunca pararam de ditar modas.  

Há quem tenha declarado luto pela vitória do “gelo com açúcar mais caro do planeta” aqui na cidade, mas há quem veja a situação por outro prisma também. Fabíola Jungles, barista, empresária, dona do Flama Torras Especiais, sócia do Manifesto Café e certificada Q-Grader pelo Coffee Quality Institute (CQI, Instituto de Qualidade do Café), ou, para muitos, somente Fafá, acha que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. “Eu não vejo a Starbucks com relação ao nosso mercado de café de especialidades como uma concorrente direta. Apesar da marca trabalhar com café especiais, ela tem outro posicionamento com relação ao produto, à torra, à maneira de servir e até com as bebidas que ela oferece. O que é servido é muito mais voltado não ao sensorial do café, mas ao paladar da bebida em si: ou do açúcar, ou das caldas, ou misturas”, analisa a empresária.

Ainda assim, por menos que se cruzem seus caminhos, um entrante deste porte na cidade, faz com que profissionais de meios correlatos se sintam pressionados a melhorar sua qualidade percebida, o que não é necessariamente ruim. Para a dona da Flama, a estratégia já está traçada. “Na minha percepção, precisamos trabalhar mais a valorização do comércio local, do pequeno, do artesanal, desse trabalho direto com o produtor, com baristas e na educação de quem consome para que ele possa perceber o valor daquele produto e principalmente não consumir uma marca por si só. Esse, infelizmente, é nosso modus operandi: consumir marcas ou consumir uma marca para tirar foto e colocar na internet. Sei que isso faz parte da experiência mas no café de especialidades, tentamos caminhar para a conscientização, consciência alimentar, consumo local, valorização das marcas locais e principalmente entender que o consumo, é um posicionamento político. Onde você coloca o seu dinheiro e o tipo de alimento que você coloca pra dentro, também são posicionamentos de onde você coloca valor”, conclui.

Com raríssimas exceções, o café comum, comprado no supermercado, está presente na maioria das residências brasileiras. O produto nos é extremamente importante, constando até na nossa cesta básica. Mesmo assim, o café especial ainda não é unânime entre todos os brasileiros. A empresária admite que a adesão ao seu mercado requer um bom caminho a ser percorrido por aqueles que desejam se aprofundar sobre o alimento. Requer trabalho reconhecer todas as nuances da produção ao consumo desta bebida indispensável para muitos. “Até pela questão financeira mesmo, não é todo mundo que vai ter acesso ao café de especialidades, porque, infelizmente, assim como uma alimentação saudável, um alimento orgânico, ele vai ter um custo maior de produção e por conta disso, para nós aqui no Brasil, ele não vai ser tão acessível. Ultimamente, especialmente por conta de toda a situação econômico-financeira do país, tem ficado cada vez mais difícil para todos”, completa. 

Dinheiro, porém, não parece ser o que impede as pessoas de acessarem e consumirem do icônico fast-food americano em forma de cafeteria. Os preços não são exatamente uma pechincha e de acordo com os funcionários com quem conversamos, as filas têm se mantido formadas até mesmo quando o shopping fecha as portas. O sucesso é notório e difícil de não ser reconhecido, especialmente no que diz respeito à marca conseguir executar com maestria sua experiência homogênea. A sua antiga fórmula parece insuperável: viver um segundo de prosperidade do american way of life, sob entorpecida euforia consumista, projetada por altas doses de cafeína e açúcar, e agora, registrada nas redes sociais.

O restaurante entrega o que promete: a marca, o post, o check in. A comida é tão admirável quanto qualquer congelado oferecido nas prateleiras dos supermercados. Já a estrela da franquia, o café, tem a sua torra industrialmente escura, de amargor talvez característico mas especialmente desnecessário. Além do mais, este “truque”, não homogeiniza só o paladar mas também todo o terroir, culturas e tradições daqueles que o produzem, resultando em algo sem qualquer identidade, para dizer o mínimo.

A marca oferece, sob o guarda-chuva de cafés variados – ou especiais – grãos e torras de diferentes regiões do planeta, tratando, por exemplo, todo o café oriundo do nosso país como se de uma fonte fosse, ainda que lavouras país afora ofereçam experiências sensoriais absolutamente distintas. Não é só conosco, Guatemala, Colômbia e outros países são colocados neste mesmo recipiente reducionista. No final das contas, ao contrário do que sugere o globalismo de seus lindos souvenirs, a experiência e sabores oferecidos são tão pasteurizados a ponto de Mumbai e Nova Iorque, Curitiba ou Rio de Janeiro, parecerem o mesmíssimo lugar.

Estamos passando pela maior crise sanitária de uma geração. Não só isso, passamos por uma crise dos nossos modos de produção insustentáveis. Houve promessas de melhoras, consumo consciente, conexão e reflexão. No entanto, velhos hábitos de consumo parecem preponderantes. A predileção pelo grande, famoso, industrializado, parece difícil de ser superada, ainda que haja indícios de exploração nas cadeias, comida que faça mal e desconexão com o público. Sem contar no dinheiro que sai daqui diretamente para o bolso do Tio Sam. A julgar pelos 40 minutos que aguardamos na fila até receber nosso pedido, muita gente parece não ter entendido nada.

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