A vina contra o Deus Mercado

Ainda que provadamente maléfico à nossa saúde, o cachorro-quente é tão permeado na nossa cultura que de vez em quando dá o que falar

Seja ao final ou início de qualquer peregrinação noturna, o cachorro-quente é sinônimo de alimentação juvenil por sua praticidade, disponibilidade e preço baixo. Independentemente da versão: com purê de batatas, prensado, num buffet de recheios, carne moída, e outras coisas mais, de norte a sul do país, todos temos ou já tivemos aquela nossa receita preferida. É a típica comida que nos conta histórias de dias passados, esteve presente durante o fortalecimento de laços sociais importantes e, definitivamente, ajudou a forjar sistemas imunológicos e digestivos super-resistentes, por todo esse Brasilzão.

Ao contrário da colocação jocosa, a realidade, porém, é outra. A “vina” é fonte comprovada de doenças. Por se tratar de um alimento ultraprocessado, de acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, deve ser evitado. Se analisarmos, por exemplo, a salsicha da marca Seara, o produto contém excesso de sal, gorduras e gorduras saturadas – usando-se o perfil de nutrientes da Organização Panamericana de Saúde (Opas). Os resultados diferem muito pouco quando se leva em consideração as marcas concorrentes. Não para por aí, é muito difícil determinar do que é feita a salsicha de fato. A do exemplo acima, conta com 27 ingredientes, incluindo pele de porco e carne reconstruída de frango (seja lá o que isso queira dizer). Definitivamente, nos dias de hoje, o embutido já não lembra em nada o original alemão, levado para os EUA, no século retrasado, de onde se popularizou mundialmente. 

Ainda que provadamente maléfico à nossa saúde, o cachorro-quente é tão permeado na nossa cultura que de vez em quando dá o que falar. Estes dias o assunto rondou a Câmara de Vereadores de Curitiba por um motivo bastante relevante. Ao contrário das ditaduras imaginárias que alguns vereadores adoram atacar, como a ditadura gay, por exemplo, a do cachorro-quente, existe de fato. Na capital, o único alimento que pode ser vendido na rua, durante a noite, é o sanduíche. Tal restrição vem de um decreto, talvez pouco conhecido pela população, assinado em 2004, pelo então prefeito, Cassio Taniguchi.

O monopólio do produto já foi motivo de outros questionamentos. O então vereador, Professor Galdino, protocolou um pedido de esclarecimentos sobre a exclusividade ainda em 2013. A prefeitura, à época, discordou do parlamentar, que dizia haver indícios da existência de uma máfia por trás da exclusividade da venda do produto. O Executivo argumentou que as escolhas se baseiam em critérios como a ocupação da calçada e a menor perecibilidade do produto, por se tratar de um embutido. Porém, não é esse o teor das críticas de hoje em dia.  

Dessa vez, os arautos defensores do liberalismo xiita, como por exemplo o partido Novo (que já havia deixado claro suas posições pouco populares aqui na coluna), não julgam o mérito da potencial ilicitude de se ter uma suposta organização, controlando um esquema, mas sim, evocam seus jargões de capitalismo de palanque para justificar sua análise. “O que esse decreto faz é criar uma reserva de mercado no horário noturno. E eu quero lembrar que fazer reserva de mercado é proibido por uma lei federal e pela Constituição Federal”, citou a vereadora Amália Tortato (Novo), para ratificar sua recomendação ao Legislativo, junto ao também signatário, Professor Euler (MDB). Que pena que a vereadora e vários de seus pares esqueçam da Constituição quando há outros temas em questão, como a cassação do seu colega negro em plenário, por exemplo.

Em mais uma demonstração de pouca eficácia, o questionamento à prefeitura deixa claro a sapiência pueril dos legisladores em termos de incentivo à concorrência e da esfera prática ligada ao setor. O que se espera é a resolução de toda a questão atrelada ao comércio gastronômico de rua de Curitiba. Um ponto de partida poderia ter sido corrigir o erro grosseiro de planejamento da lei que regulamenta o exercício da atividade de venda de alimentos em espaços públicos, trazendo a atualização necessária sobre o tema, que é a lei da regulamentação dos foodtrucks de 2015 ( Lei Municipal nº 14.634 , de 14 de abril de 2015).

Um dos principais problemas do dispositivo é não considerar os preceitos básicos de livre mercado. A administração pública fixou os pontos onde esses comerciantes poderiam atuar, sem deixar que eles pudessem identificar onde estão suas demandas e vantagens operacionais. O resultado foi um projeto natimorto, com pouquíssima adesão, enterrado, de maneira prática, logo em seguida. Fica fácil de entender o descompasso e saber que, um olhar minimamente mais interessado, veria que o problema, para de fato fomentar a atividade e democratizar a oferta do mercado noturno em Curitiba, depende de uma análise mais profunda do que uma simples alteração à lista de comercialização de produtos pelo comércio ambulante.

O comércio de uma maneira geral, mas principalmente o setor gastronômico, prospera num ambiente que conte com uma população com alto poder de compra, contratos de trabalhos sólidos, oferta de crédito barato e incentivo, não só autorizações pontuais, regulando a venda de coxinha ou cachorro-quente depois das seis da tarde. O que os legisladores deste capitalismo palanqueiro deixam claro é que lhes faltam muita compreensão das próprias dinâmicas de compra e venda do comércio e, principalmente, das necessidades dos trabalhadores do setor.

A verdade é que para eles está bom se for só coxinha, batata-frita ou cachorro-quente. É até onde eles estão dispostos a ir, seja por indiferença, falta de competência ou preguiça mesmo. Eles têm a certeza de que do resto, o Deus Mercado, que só existe na cabeça deles, vai cuidar! 

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

O (des)encontro com Têmis

Têmis gostaria de ir ao encontro de Maria, uma jovem vítima de violência doméstica, mas o Brasil foi o grande responsável pelo desencontro

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima