Decepção e oportunidade perdida: STF falha na proteção dos direitos trans

Ao ignorar a realidade vivida pelas pessoas trans, o STF abdica de sua responsabilidade de garantir a proteção ampla dos direitos humanos

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de rejeitar o exame do Recurso Extraordinário (RE) 845779, que envolvia uma mulher trans impedida de usar o banheiro feminino em um shopping center, representa um retrocesso significativo na luta pelos direitos das pessoas trans no Brasil. O argumento da maioria dos ministros de que a questão tratada diz respeito apenas a danos morais, sem envolver matéria constitucional, ignora a importância fundamental do reconhecimento e proteção da identidade de gênero como um direito humano básico.

A decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), que reverteu a condenação do shopping a pagar indenização por danos morais, é emblemática de um entendimento restritivo e insensível às realidades vividas pelas pessoas trans. Ao classificar o impedimento como “mero dissabor”, o TJ-SC desconsidera o impacto profundo que tais situações têm na dignidade e no bem-estar psicológico das pessoas trans, perpetuando a marginalização e o estigma que enfrentam diariamente.

O STF, ao abdicar de sua responsabilidade de tratar essa questão como um tema de direitos humanos protegidos diretamente pelo estatuto constitucional e convencional, falha em construir standards sobre a proteção de um grupo social extremamente vulnerável. A recusa em reconhecer a repercussão geral da matéria e a restrição do debate ao âmbito dos danos morais privam a sociedade de uma decisão judicial que poderia promover a igualdade e a inclusão, conforme preceitos constitucionais de dignidade humana, igualdade e não discriminação.

A justificativa de que o STF não poderia analisar a questão por falta de abordagem explícita de preconceito ou transfobia na decisão do tribunal inferior é, no mínimo, uma interpretação excessivamente técnica e formalista. Essa posição desconsidera princípios fundamentais como a proporcionalidade e a discriminação indireta, que conferem competência ao Supremo para analisar questões de direitos fundamentais mesmo quando não explicitamente mencionadas em decisões anteriores. 

Ao ignorar a realidade vivida pelas pessoas trans e a importância de se combater práticas discriminatórias indiretas, o STF abdica de sua responsabilidade de garantir a proteção ampla dos direitos humanos. Adotar uma visão restrita impede que o tribunal cumpra sua função de promover a dignidade e a inclusão, perpetuando a marginalização de vulnerabilidades extremadas.

A decisão do STF de rejeitar o exame do Recurso Extraordinário (RE) 845779 é ainda mais decepcionante considerando o contexto que posiciona o Brasil como líder mundial em violência contra essa comunidade trans, evidenciando a urgência de intervenções judiciais que possam mitigar esse cenário de vulnerabilidade extrema. A postura do STF, ao se recusar a avançar no reconhecimento dos direitos dessas pessoas, contradiz a necessidade de proteção reforçada que perpetua um ciclo de discriminação e violência que exige respostas claras e eficazes do sistema judiciário.

Além disso, ao transferir a discussão para um futuro incerto, o STF posterga a garantia de direitos fundamentais que deveriam ser imediatos. A existência de cinco Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) sobre o tema atualmente no Supremo mostra a urgência e a relevância dessa questão. 

A postura dotada pela maioria no julgamento em questão ignorou a oportunidade de o Supremo estabelecer um precedente significativo que reforçaria o direito das pessoas trans de serem tratadas de acordo com sua identidade de gênero em todos os espaços públicos, incluindo banheiros. A Corte deveria ter aproveitado a oportunidade para avançar na proteção dos direitos humanos e reafirmar o compromisso constitucional com a dignidade e a igualdade de todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero.

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