Um standard em torno da meia-noite

Um standard ou um tema da moda têm muito a dizer sobre as contradições do processo de produção e circulação de mercadorias culturais, em que a música é uma das formas artísticas e o standard a sua expressão material

Uma importante parte da história do jazz e do desenvolvimento de seu repertório foi formada por standards, aqueles temas ou motes musicais de tão populares se tornaram parte constitutiva dessa linguagem musical. Os standards foram essenciais para estabelecimento do jazz no mercado da música ao construir uma identidade sonora única, mas também favoreceram uma noção coletiva de trabalho entre instrumentistas com diferentes origens e formações, assim como abriram espaço para a consagração individual de músicos na utilização do recurso técnico do improviso em seus respectivos instrumentos. Noutras palavras: para se compreender a produção e a reprodução do jazz na forma standard é necessário considerar, ao mesmo tempo, estes três elementos intercambiáveis (mercado, trabalho coletivo e expressão individual) e como se tornaram a expressão material da forma-canção, que se recria a cada nova interpretação.

Então, diferentemente da abordagem teórico-critica do filósofo Theodor Adorno (já considerada nesta coluna anteriormente), o standard ocupa uma posição de vital importância dentro do jazz porque, de certa maneira, permite repor toda dimensão comunitária do trabalho musical, em que temas, melodias, arranjos são compartilhados pelos músicos e recriados ou reconstruídos a cada nova apropriação. Assim, o standard não implica necessariamente na padronização da composição ou mesmo da audição, mas exerce a função de ponto de partida, comum a uma comunidade de artistas que proporcionará em obras com diferentes abordagens.

Exemplos de standards não faltam: “A foggy day” (Gershwin), “All of me” (Simons/Marks), “All the things you are” (Hammerstein/Kern), “Autumn Leaves” (Mercer), “Blues for Alice (Parker), “C jam blues” (Ellington), “Body and soul” (Green), “Caravan” (Tizol), “Cherokee” (Noble), “Desafinado” (Jobim), “Just friends” (Klemmer/Leavis), “Lullaby of birdland” (Shearing), “My funny Valentine (Rodgers/Hart), “Stella by starlight” (Young), “Summertime” (Geshwin), “Take five” (Desmond), “Waltz for Debby” (Evans), são alguns dos “temas clássicos” do jazz, sempre retomados e recriados a cada nova execução. Foram e continuam a ser standards reconhecíveis em qualquer lugar por onde circule uma vaga ideia do que seja jazz. Identidade sonora resultante da circulação dos temas no mercado fonográfico voltado a um público específico, mas que se renova na atividade coletiva de instrumentistas ao mesmo tempo em que se preserva na criação individual de solistas. Nesse sentido, identificamos na obra tanto os elementos residuais referentes a uma memória social na reiteração do repertório, como os elementos emergentes que apontam para a ressignificação da tradição/padrão no processo social de criação artística. Então, um standard ou um “tema da moda” têm muito a dizer sobre as contradições do processo produção e circulação de mercadorias culturais, em que a música é uma das formas artísticas e o standard a sua expressão material.

O pianista Thelonious Monk na década de 1950. Foto: reprodução.

Um exemplo que gostaria de esmiuçar um pouco mais é um tema amplamente consagrado no jazz e que se firmou como um de seus maiores standards: “Round midnight”, composição do pianista Thelonious Monk (1917-1982) em colaboração com o trompetista Cootie Williams (1911-1985) – posteriormente Bernie Hanighen (1908-1976) adicionou-lhe letra. De imediato surge uma constatação curiosa, pois quando mencionada, “Round midnight” é imediatamente associada ao nome de Miles Davis (1926-1991), célebre trompetista que gravou o tema em álbum homônimo, na segunda metade da década de 1950. Mas isso tem uma explicação já oferecida por historiadores do jazz. Ted Gioia, por exemplo, explica que a famosa interpretação que Miles deu ao tema, na edição do Festival de Newport de 1955, foi decisiva e resultou num certo reconhecimento de “obra definitiva”, pois o arranjo construído para aquela ocasião se tornou uma chave de entrada para as outras versões que se sucederam no mercado fonográfico. Mas a questão é: como Miles se apropriou do tema que orginalmente pertencia a Monk? Diversas curiosidades recheiam os livros sobre história do jazz, sobretudo quando tentam desvendar essa transcriação de Miles a partir do tema de Monk. Uma delas, segundo Gioia, é que Miles e Monk participaram da mesma edição do festival e dividiram o palco das apresentações no dia 17 de julho de 1955. Ou seja, a ambos foi dada a possibilidade de não apenas um observar a performance do outro, mas de tocarem juntos três temas naquele festival: “Hackensack” (Monk), “Now’s the time” (Parker) e, claro, “Round midnight” (Monk). Segundo contam, quando voltavam do festival num mesmo taxi, Monk teria dito a Miles que ele tinha tocado muito mal a “Round midnight”, desfigurando-a. Que depois disso houve uma discussão acalorada entre os dois dentro do carro a ponto do pianista pedir ao taxista que parasse o carro. Foi então que Monk desembarcou e continuou a pé até o hotel. Os dois se reencontrariam tempos depois em Nova York.

Miles Davis (trompete) e Thelonious Monk (piano) interpretam “Round Midnight no Newport Jazz Festival, em 17/07/1955.

Mas o fato é que essa aparição de Miles em Newport em 1955 e, em especial o arranjo que produziu para essa interpretação do tema de Monk, deu a ele uma projeção que o alçou, inclusive, a outros patamares nas negociações com as gravadoras a partir daquele momento – logo depois disso, assinou contrato com a Columbia, onde gravou dois importantes álbuns antes do final daquela década: Round About Midnight (1957) e Kind of Blue (1959). Entretanto, em discordância com a opinião de Monk, mais tarde Miles detalhou em sua biografia esse episódio de Newport. Segundo ele, o público teve, desde o primeiro momento, um julgamento diferente de Monk. Dizia Miles: “todo mundo ficou ensandecido depois que terminamos o dueto. O público me aplaudiu de pé. Ao baixar a cortina todos me olhavam como se eu fosse um rei ou algo assim. Depois disso, muitas gravadoras vieram me oferecer contratos de todo tipo”.

Miles Davis em imagem registrada na década de 1950. Foto: reprodução.

Apesar do imbróglio causado pela situação concorrencial entre os dois, deve se levar em consideração que a década de 1950 foi decisiva no que concerne à estruturação de um mercado mais estratificado e mais diversificado em termos de consumo musical. O jazz passou por um processo de acomodação das tendências que anos antes haviam promovido rupturas estéticas e formais decisivas, como foi o caso do bebop. Na segunda metade daquela década, outras tendências e outras formas de experimentação estiveram no horizonte de compositores, intérpretes e instrumentistas. Monk, que até então havia circulado estritamente entre grupos herdeiros do bebop, viu-se obrigado a decantar seu estilo a ponto de gravar o Thelonious Monk Plays Duke Ellington (1955),um álbum comedido que continha apenas standards ellingtonianos. Era visível seu esforço para se estabelecer profissionalmente noutros círculos mais “tradicionais”, mas sem abandonar as conquistas formais obtidas no desenvolvimento do bebop – aliás, esse tour de force de Monk merece, por si só, um coluna específica.

Capa do álbum Thelonious Monk Plays Duke Ellington, gravado em 1955 e lançado em 1956, pela Riverside. Um projeto fonográfico relançar Monk entre os consumidores mainstream.

A propósito, o próprio Miles (que também teve atuação central no bebop, pois chegou a gravar com Charlie Parker na Savoy), antes de assinar contrato com a Columbia, tinha passado pela Prestige Records onde produziu uma série de álbuns importantes, mas sem muita penetração comercial naqueles anos. Foram os casos de Blue Haze (1954), Walkin’ (1954), Blue Moods (1955) e Cookin’, Relaxin’, Streamin’ e Workin’, todos de 1956 e realizados a partir do mesmo quinteto-base que se tornou posteriormente histórico: Miles Davis (trompete), John Coltrane (sax tenor), Red Garland (piano), Paul Chambers (baixo) Philly Jo Jones (bateria).

Capa do álbum Relaxin’ de Miles Davis, gravado em 1956 e lançado pela Prestige Records em 1958. Hoje as sessões pela Prestige são consideradas quintessência de Miles na década de 1950, pois serviram de laboratório aos trabalhos produzidos na Columbia Records no final daquela década.

No caso do registro de “Round midnight” no Festival de Newport de 1955, o elemento instigante esteve no modo como Miles abordou a composição de Monk, pois ao contrário das práticas mais usuais no jazz, o trompetista sequer executou um solo para exibir seus prodígios técnicos no instrumento. Abdicou da eloquência dos anos do bebop e se limitou-se a “oferecer uma exposição da melodia em preto-e-branco”, como define Gioia ao discorrer sobre o episódio. Ali, acompanhado unicamente pelo piano e o tema de Monk, Miles ofereceu uma interpretação tão concisa e econômica quanto fascinante do tema e dava mostras de como o estilo do trompetista já desenhava os rumos para o que viria a ser chamado de cool jazz. E se notarmos, pouco se alterou na versão que ficou registrada no álbum homônimo produzido pela Columbia, em 1957. É reconhecível neste álbum o andamento conforme a performance de Newport, no entanto, estão acrescidos nessa sessão da Columbia a estrutura e o arranjo já desenhados nos registros da Prestige, estes realizados na companhia do sax tenor de John Coltrane (1926-1967). Miles preservara o intimismo da versão de 1955 e ainda acrescentou a surdina de metal na campana do trompete, recurso muito utilizado pelas big bands para diferenciar timbres naturalmente semelhantes entre si dos trompetes. No contraponto de Miles, Coltrane é quem constrói o solo (o improviso) em “Round midnight”, já num andamento mais rápido e mais próximo daquilo que Monk imaginava à sua composição original. E assim,“Round midnight” ficou registrado no álbum Round About Midnight de Miles Davis Quintet:

“Round Midnight” registrada no álbum Round About Midnight por Miles Davis (trompete), John Coltrane (sax tenor), Red Garland (piano), Paul Chambers (baixo), Philly Jo Jones (bateria) e arranjos de Gil Evans. Columbia Records, 1957.

Mas o exposto até aqui reflete o ponto de chegada desse celebrado standard do jazz. Deve-se lembrar que muito antes da gravação de Miles pela Columbia a canção levou mais de dez anos circulando em diferentes espaços, com diferentes arranjos e interpretações. Sabe-se, por exemplo, que Monk registrou essa canção em 1943 sob título “I need you so” e com uma letra bastante simplória escrita por uma vizinha, Thelma Elizabeth Murray e desse material original desconhece-se qualquer registro sonoro.

Mas terminada a Segunda Guerra, houve nos EUA um impulso no consumo de bens culturais e o mercado da música se beneficiou dessas transformações na economia estadunidense. Verificou-se o aumento da circulação de discos, novas tecnologias na captação de som foram apresentadas, uma quantidade e variedade maior de instrumentos musicais foram comercializados num momento de retomada do crescimento econômico e o consumo de bens. A Selmer, famosa marca francesa que fabricava e comercializa instrumentos musicais, estabeleceu uma sede em Nova York e entre seus “garotos-propaganda” estava Coleman “Bean” Hawkins (104-1969), para quem gravou uma série de peças em solo com sax tenor da Selmer para divulgar o produto ao mercado, em meados de 1945. Segundo o crítico Scott Deveaux, entre as peças estava o registro de uma improvisação em duas partes, conhecida como “Hawk’s variation”. Ainda que tenha sido uma peça meramente publicitária, essa foi uma das primeiras vezes em que se registrou um saxofone sem acompanhamento rítmico das formações convencionais de jazz, contendo bateria e baixo. Segundo Deveaux, um registro anterior a “Picasso”, outra célebre gravação do solo de Hawk ao sax tenor totalmente desacompanhado de outros instrumentos. “Hawk’s variation n.º 2” nada mais era que uma improvisação do sax tenor em torno o tema de “Round midnight” e sobre a sequência harmônica da composição de Monk. Com isso, esse croqui de Coleman Hawkins talvez seja o primeiro registro daquele que se tornaria um dos mais importantes standards do jazz.

Coleman Hawkins (sax tenor) improvisa em torno de “Round midnight” e explora a sequência harmônica composta por Thelonious Monk. A peça publicitária da Selmer (fabricante de instrumentos musicais) foi intitulada “Hawk’s Variation nº 02”. A “Hawk’s Variation nº 01 era um improviso sobre os temas de “Body and soul” e “Stardust”.

Comercialmente, o registro mais pretérito que se tem de “Round midnight” foi de Cootie Williams, numa gravação de 22 de agosto de 1944. Williams foi um dos mais proeminentes trompetistas da big band de Duke Ellington, mas que nos anos 1940 deixou Duke para formar sua própria banda, inclusive excursionar pela Europa com relativo sucesso depois de 1945. Cootie Williams, assim como Miles alguns anos depois, anteviu as possibilidades que a canção de Monk – composta para piano – oferecia se fosse executada ao trompete, dada sua carga dramática e a presença marcantes de tons menores. Conforme nota Deveaux, Williams foi o primeiro de uma série de músicos que introduziram modificações importantes na composição de Monk.

Williams acrescentou um interlúdio estridente de metais soando em uníssono que muitos outros instrumentistas posteriores preferiram ignorar, mas que, segundo Deveaux, essa mudança mínima foi suficiente para Williams assinasse a composição em parceria com Monk. Foi também nessa mesma época que Bernie Hanighen escreveu uma nova letra para a melodia de Monk-Williams.

“Round midnight” (Monk-Williams-Hanniger) interpretada por Cootie Williams and His Orchestra: Cootie Williams, Emmit Perry, George Treadwell, Lamar Wright, Tommy Stevenson (trompetes); Ed Burke, Robert Horton, Ed Glover (trombones), Eddie “Cleanhead” Vinson, Frank Powell (sax alto), Sam “The Man” Taylor, Lee Pope (sax tenor); Eddie de Vertueil (sax barítono); Bud Powell (piano), Leroy Kirkland (guitarra), Carl Pruitt (baixo), Silvester Paine (bateria). NYC, 22 de Agosto de 1944.

Mas se prestarmos atenção, nem a gravação de Coleman Hawkins ou o registro de Cootie Williams apresentam o interlúdio que caracterizaria “Round midnight” na versão finalizada por Miles, pela Columbia em 1957. A introdução que permaneceu nas versões posteriores desse standard foi, na verdade, escrita por Dizzy Gillespie (1917-1993), outro importante trompetista do bebop e que aprimorou a peça de Monk, construindo a linha melódica que inicia a canção na forma de um interlúdio, bem como a parte final que conclui “Round midnight” destacando a técnica de “ponte” ou “passagem”, muito recorrentes nas composições de Dizzy como, por exemplo, em “A night in Tunisia”. Brandford Marsalis, saxofonista tenor que recentemente gravou esse tema de Monk disse há algum tempo, que “a harmonia composta por Monk em ‘Round midnight’ é tão complexa que os músicos, em sua maioria, se viam na impossibilidade de tocá-la. Mas Dizzy e depois Miles, encontraram uma forma muito mais simples de abordá-la, dividindo-a em três partes contendo o interlúdio, o desenvolvimento do tema e dos solos e, por fim, o desfecho”. E essa é a versão que todo mundo toca até hoje. No entanto, mesmo as alterações dessa canção são continuamente alteradas, sempre recolocando a complexidade da composição original de Monk. Desse modo, com Dizzy chegamos ao material encontrado por Miles ao elaborar seu arranjo de “Round midnight”, juntamente com Gil Evans, na sua versão de 1957.

Dizzy Gillespie Big Band interpretam “Round midnight”. Dizzy Gillespie (trompete); Howard Johnson, John Brown (sax alto); Ray Abrama, James Moody (sax tenor); Sol Moore (sax barítono); Talib Dawud, Johnn Lynch, Dave Burns, Elmon Wright (trompetes); Alton Moore, Leon Comegys, Gordon Thomas (trombones); Thelonious Monk (piano); Mil Jackson (vibraphone); Ray Brown (baixo) e Kenny Clarke (bateria). Gravado no Spotlite Café, in New York, 1946.

Como frisa Ted Gioia, esta canção é uma das poucas composições de Monk em que intérpretes possuem facilidade para deixar sua marca pessoal durante a execução. Outras composições como “Epistrophy”, “Well, you needn’t” ou “Straight no chaser” são mais insólitas e quase obrigam o músico a arremedar os maneirismos do pianista. Por outro lado, continua Gioia, “Round midnight” pode ser tocada como uma balada convencional sem necessariamente perder a essência da composição original. Entretanto, é impossível compreender o sentido de “Round midnight” sem escutar como seu próprio compositor a interpretava. Para nossa felicidade, Monk gravou esse standard muitas vezes em diferentes versões, acompanhado de banda ou em piano-solo. Aqui vale a pena ouvir a verão registrada em 1947, pela Blue Note, já com os arranjos de Dizzy assimilados a sua interpretação:

Thelonious Monk (piano), Art Blakey (bateria), Bob Page (baixo); George Taitt (trompete) e Shahib Shihab (sax alto). Registro de 21 de novembro de 1947, realizado pelo Studios WOR, Nova York.

 Por fim, pode-se dizer que o encanto que “Round midnight” exerce sobre músicos e sobre os ouvintes contribui não apenas para a longevidade de um tema tão popular do jazz, mas demonstra como temas-padrão ou standards carregam consigo um conjunto complexo de referências estéticas que, por sua vez, exprimem o processo criativo da canção por meio da atividade dos músicos e suas “disputas”. Ainda que tenhamos a necessidade em classificar os standards como simplificações do campo musical, a permanência e a reprodução de um determinado tema, bem como suas inúmeras alterações, traduzem relações mais complexas existentes entre músicos, repertório/mercado e público. A longevidade ou a perenidade de um standard como “Round midnight” implica numa série que questões que necessitam de uma abordagem conjunta. Não apenas para entender como a obra se tornou o que é, mas também para compreender a objetividade e a subjetividade processos artísticos implicados na obra e materializados na canção ou no standard.

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