O corpo e a alma do tenor

Nos tempos da ragtime, do stride ou do boogie-woogie o sax custou a passar por processos de “refinamento” e controle do seu timbre metálico, sobretudo, pelo estudo minucioso das capacidades que o instrumento poderia oferecer ao músico que se dedicasse a ele

Há quem diga que o saxofone, em especial o sax tenor, personifique a imagem do próprio jazz. Projetado originalmente na forma de um “J”, representa visual e simbolicamente a primeira letra do vocábulo, ao mesmo tempo em que evoca, com seu timbre, o que há de mais sui generis no campo da música instrumental. O saxofone empunhado como um “J” pelas mãos do instrumentista imprime a imagem em silhueta do jazzman, que reforça a ideia, ainda que na forma de um clichê, da natureza única dessa linguagem musical. Porque há de se convir que uma pessoa acomodada confortavelmente ao piano pode nos remeter a qualquer outro tipo de repertório, como o de concerto, por exemplo. Um baterista atrás de seu instrumento ao manejar as baquetas pode, sem esforço algum, fazer alusão ao rock e a sua sessão rítmica. Ou ainda, uma pessoa sustentando um trompete em riste, pode nos conduzir à memória que temos das bandas marciais. Mas quando temos diante de nós um saxofonista, sem titubeios associamos automaticamente sua imagem ao jazz. Em resumo: o sax tornou-se parte fundamental da sonoridade, mas também da iconografia do jazz.

Mas isso nem sempre foi assim. Essa imagem recorrente do sax como parte fundamental de qualquer grupo de jazz ou sessão de improvisos emergiu num momento específico do seu desenvolvimento. Se notarmos as poucas imagens registradas das décadas de 1910 ou 1920, o saxofone ocupa um lugar muito modesto no interior das orchestras, que ainda ensaiavam a forma mais apropriada para cada um dos instrumentos. Nos tempos da ragtime, do stride ou do boogie-woogie o sax custou a passar por processos de “refinamento” e controle do seu timbre metálico, sobretudo, pelo estudo minucioso das capacidades que o instrumento poderia oferecer ao músico que se dedicasse a ele. Num tempo em que clarinetes, banjos e washboards davam o tom do improviso, o sax era ainda um instrumento secundário e pouco versátil como se constata abaixo numa sessão 1926, com Louis Armstrong and His Hot Five, interpretando “Come back, sweet papa”. O sax alto de Johnny Dodds aparece já nas primeiras frases da canção, logo após a “introdução” do trompete de Armstrong, e solo do sax de Dodds segue pelos 43 segundos seguintes:

“Come back, sweet papa” (Louis Russell) interpretado por Louis Armstrong and His Hot Five, grupo composto por Johnny St. Cyr (banjo), Lil Armstrong (piano), Johnny Dodds (sax alto e clarinete), Kid Ory (trombone) e Louis Armstrong (trompete). A gravação data de 1926.

Assim, com essa “sonoridade quadrada” de um Dodds, o saxofone demoraria ainda alguns anos até que sua capacidade técnica fosse explorada pelos músicos dedicados a esse instrumento. Ou seja, com a ampliação das possibilidades harmônicas no jazz ainda incipiente dos anos 1920, formações como a de Armstrong, King Oliver, Kid Ory, Fletcher Henderson entre muitos outros bandleaders, ensejaram a recomposição dos grupos, do repertório e até mesmo da estética visual. Mais que isso, reconsideraram a disposição dos diferentes instrumentos no interior das orquestras e dos pequenos grupos, incorporando novos instrumentos e arranjos. Momento em que o jazz deixava de ser exclusivamente rítmico-percussivo e passava a assimilar variações harmônicas mais complexas e melodias dedicadas a instrumentos específicos e seus solistas.

Como resultado dessa transformação podemos dizer que a década de 1930, em especial a sua segunda metade, marcou o início do reinado do saxofone nos grupos de jazz. Saxofonistas como Johnny Hodges (1907-1970), Sidney Bechet (1897-1959), Chu Berry (1910-1941), Earl Bostic (1913-1965), Don Byas (1912-1972), Harry Carney (1910-1974), Benny Carter (1907-2003), Arnett Cobb (1918-1989), Budd Johnson (1910-1984), entre outros, conquistaram importância e construíram suas carreiras como solistas, a partir desse momento em que o jazz sofreu substanciais mudanças tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. A consagração desses instrumentistas, sobretudo, a partir da projeção do solista, figura central das big bands daqueles anos, resultou também na elevação do saxofone (alto, tenor, soprano ou barítono) a outro patamar no desenvolvimento da própria música popular nos Estados Unidos.

Então, pode-se afirmar que esse “nascimento” do sax dentro do jazz tem uma data muito precisa, e foi em 11 de outubro de 1939. Foi nesse dia que Coleman Hawkins (1901-1969) entrou nos estúdios da Bluebird (RCA) para gravação de um tema que se tornou um dos mais famosos standards dos saxes tenores no decorrer no século XX: “Body and soul”, composta por Johhny Greer, Edward Heyman, Robert Sour e Frank Eton, no ano de 1930. A proposta inicial de Hawkins, segundo pesquisa realizada por Scott Deveaux, era realizar o registo da sua banda, que naqueles dias estava com contrato de trabalho no Kelly´s Stables, um nightclub de Nova York. Durante a sessão de gravação, Hawkins testou diferentes temas com arranjos variados e um tanto complexos para a execução dos demais músicos do grupo. Foi então que, a pedido do produtor, Hawkins tocasse algo de forma mais natural possível, tentando emular o ambiente público do bar, imaginando o público descontraído a sua volta enquanto tocava seus instrumento despreocupadamente. A sugestão do produtor para esse improviso foi o tema de “Body and soul”, ao que Hawkins titubeou em interpretá-la por não gostar da combinação harmônica, mas o fez sem qualquer ensaio ou notação escrita em pauta. O resultado foi este:

Coleman Hawkins and His Orchestra interpretam “Body and soul”. Com Coleman Hawkins (sax tenor), Tommy Lindsay, Joe Guy (trompetes), Earl Hardy (trombone), Jackie Fields, Eustis Moore (sax alto), Gene Rodgers (piano), William Oscar Smith (baixo) e Arthur Herbert (bateria). Registro pela Bluebird (Nova York), 11/10/1939.  

O desenho da melódico construído por Hawkins é de uma delicadeza, ao mesmo tempo, de uma perfeição que não caberia na simplificação do pentagrama. Concluída a introdução do piano de Gene Rodgers, a performance de Hawkins é o registro de uma obra-prima do jazz ao sax tenor, que iniciava ali um longo trajeto em direção ao seu desenvolvimento posterior, nos anos seguinte. Seu tom suave, sugerindo fugas, mas sempre repondo as frases centrais da melodia, o sax tenor conduz a orquestra a uma nova concepção do improviso, mais livre e que deixa de constituir mero adereço no interior da orquestra e passa a organizar todo o trabalho coletivo dos trompetes, dos saxes altos e mesmo da sessão rítmica de baixo e bateria. Segundo Deveaux, Hawkins, nessa versão de “Body and soul”, “caminha por um novo território, estendendo sua frase inicial em um arco melódico original e suas frases em espiral, representam um ápice do estilo de arpejo, que avançam com segurança e liberdade, criando tensão original de ‘Body and soul’”.

Essa gravação de Hawkins lhe rendeu muita popularidade. O disco tocou por vários meses nas rádios norte-americanas e se consagrou comercialmente. E a canção que até então era mais uma entre as centenas de canções standards do jazz, passou a ser regravada sistematicamente por diferentes instrumentistas e vocalizadas por cantoras e crooners. Apesar do tema ter sido celebrado pela beleza do fraseado de Hawkins, demonstrava também a capacidade de renovação do jazz e das possibilidades de se transformar um tema relativamente simples do cancioneiro popular urbano norte-americano num importante experimento melódico e harmônico a partir do inventivo tenor de Coleman Hawkins.

Não à toa, outras versões de “Body and soul” foram registradas nos anos seguintes, sempre tendo o sax tenor como instrumento primordial na sua interpretação. Da mesma época, a interpretação de Lou “Chu” Berry apresenta-nos o tema que remete diretamente à intepretação de Hawkins, embora com liberdade mais comedida e com uma presença de uma certa racionalidade da pauta. Aqui o piano de Gene Rodgers é substituído pela guitarra de Danny Barker, mas que trabalha sem perder de vista a forma-hawkins de construção do fraseado. No entanto, a marca original dessa sessão em relação a de Hawkins fica por conta da entrada do eloquente trompete de Roy Eldridge (1911-1989), levando a uma aceleração do andamento do tema, finalmente reposto por Chu Berry, nos compassos finais:

Chu Berry & his ‘Little Jazz’ Ensemble interpretam “Body and soul”. Com Leon ‘Chu Berry (sax tenor), Roy Eldridge (trompete), Clyde Hart (piano), Danny Barker (guitarra), Artie Shapiro (baixo) e Sidney Catlett (bateria). Gravação de 1939.  

Já na década de 1940 outro grande nome do sax tenor deixaria sua contribuição à execução do tema consagrado por Hawkins. Lester Young (1909-1959) há muito era importante saxofonista na orquestra de Count Basie (1904-1984), que no início dos anos 1940, devido à falência de muitos grandes grupos por causa da economia de guerra, investiu em trabalho com pequenos grupos e formações, ou mesmo acompanhando outros artistas já consagrados, como Billie Holiday. Em 1942, numa de suas excursões pela costa oeste dos Estados Unidos, registrou outra belíssima interpretação de “Body and soul”, com arranjos muito semelhantes àqueles construídos por Hawkins no registro pela Bluebird, em 1939. Pela formação em trio (baixo, piano e sax tenor), naturalmente o tema é construído a partir de uma perspectiva intimista que, por sua vez, faz lembrar a forma com que Hawkins marcou essa canção destinada às gerações posteriores.

Lester Young (sax tenor), Nat King Cole (piano) e Red Callender (baixo) interpretam “Body and soul”, em registro de 15/07/1942, em Los Angeles.

Uma outra versão de “Body and soul”que merece destaque é aquela que foi registrada em 1964 pelo quarteto sob a condução de John Coltrane (1926-1967). As conquistas formais e o experimentalismo de Coltrane, sobretudo após sua prática musical sobre o modalismo transparecem nessa “leitura” do standard. Mas as citações ao arranjo original proposto por Hawkins aparecem desde o primeiro momento, quando o piano de McCoy Tyner sugere em qual campo harmônico o tema será desenvolvido. Coltrane, acompanhando Tyner, mas permitindo-se uma maior liberdade, parece reescrever o tema, enquanto o baixo de Steve Davis insiste em pizzicato sobre a mesma nota nos cinco minutos de improvisação.

John Coltrane (sax tenor), McCoy Tyner (piano), Steve Davis (baixo) e Elvin Jones (bacteria) executam “Body and Soul” a partir de uma forma em que contempla a forma original de Hawkins, mas ao mesmo tempo dá nova roupagem ao tema, inserindo-o nas conquistas formais do jazz dos anos 1960. O registro data de 1964, pela Atlantic Records.

Por fim, vale a pena citar uma das mais emblemáticas “traduções” de “Body and soul” para o sax tenor. Sonny Rollins (1930) sempre foi considerado uma espécie de outsider dentro do jazz. Muito diferente de outros músicos, suas experiências harmônicas e sua concepção rítmico-musical sempre foram difíceis de associar a esta ou aquela tradição jazzística. Os grupos que formou, por exemplo, nos anos 1950 sem a presença de piano ou do sax tenor apenas acompanhado de uma única guitarra, configuraram verdadeiras rupturas com a forma tradicional de se produzir jazz até então. E essa interpretação do tema clássico de Hawkins não apenas comprova sua excelente habilidade na improvisação solo, mas também parecer recuperar aqui o que o jazz – sobretudo o de Coleman Hawkins – tem de mais tradicional. O fraseado, a divisão do tempo e o modo como combina a complexa harmonia do standard com sua melodia, parece demonstrar o elo que Rollins possui com a tradição sonora do grandes tenoristas que se iniciam com Coleman Hawkins e que termina com ele próprio:

Sonny Rollins interpreta “Body and soul” em solo ao sax tenor. Registro pela Verve, em 1958.

Portanto, o tema da “Body and soul” atravessa a história do jazz assim como atravessa a história da música produzida no século XX. Porque as diferentes apropriações, leituras e interpretações, ora repõem a estrutura original da obra primeira, ora afastam-se dela, mas sempre tendo nela a referência, o horizonte musical do repertório da música popular. Que um tema como este foi capaz de, por sua vez, dar uma identidade ao instrumento que aos poucos construiu sua importância dentro da música, que o sax tenor é corpo e alma do jazz. Quem dirá o contrário?

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