Apenas Jazz!

A série Just Jazz produzida e promovida por Gene Norman foi uma peça singular naquele momento de popularização da linguagem jazzística entre públicos não frequentadores de cafés, bares e boates

Já falamos por aqui sobre saxofonistas, trompetistas, pianistas, cantoras e baixistas do jazz. Também abordamos vários álbuns, algumas importantes experimentações, assim como evidenciamos a relevância dos festivais e das gravadoras na disseminação dessa linguagem musical em todo globo. Se notarmos bem, há uma infinidade de “portas” pelas quais podemos adentrar nesse universo sonoro e dele extrair um conjunto de elementos para pensar não apenas a música, mas as relações sociais que produzem essa mesma música.

E, às vezes, se torna um tanto difícil afastar-se da fruição estética e encarar a obra musical como objeto de uma análise. Isso porque a música, e tal como foi e continua a ser consumida em todo mundo, remete-nos a um suposto descompromisso inerente ao mundo das artes; em que os solfejos, cadências, escalas, harmonias, melodias e ritmos compõem um conjunto elementos a serem absorvidos sem a necessidade de uma prévia racionalização – ou seja, de pensar os elementos sonoros como parte da resposta a um problema anteriormente proposto ao músico-compositor.

Um exemplo interessante que nos permite identificar os processos de construção da forma de audição do jazz são as performances didáticas que Norman Granz (com a Jazz ath The Philharmonic) e Gene Norman (com a Just Jazz) promoveram em diferentes momentos, na segunda metade do século XX, nos EUA. Estas audições públicas em grandes teatros com “pompa e circunstância” formaram não apenas uma legião devotos do jazz após a Segunda Guerra no EUA, mas consolidaram um público maior entre brancos com a formulação do chamado jazz mainstream, ou seja, aquele tipo de interpretação mais palatável e menos experimental a ouvidos não tão exigentes.

A série Just Jazz produzida e promovida por Gene Norman foi uma peça singular naquele momento de popularização da linguagem jazzística entre públicos não frequentadores de cafés, bares e boates. Mais especificamente, uma produção realizada em 1947 chama-nos atenção até hoje pela qualidade de suas formações em que foram empregados instrumentistas de grande repercussão com outros menos conhecidos.

Antes, vale ressaltar que Gene Norman (1922-2015) foi um produtor musical de grande repercussão que, num primeiro momento, promoveu inúmeros músicos de jazz na costa oeste do EUA. Na década de 1940 fundou alguns clubes de jazz em Los Angeles, sempre contratando nomes reconhecidos para apresentações em seus estabelecimentos. No anos de 1954 fundou a GNP (Gene Norman Presents), que chegou a gravar nomes como Louis Armstrong, Duke Ellington, Dizzy Gillespie, Lionel Hampton, Max Roach, George Shearing e Art Tatum. Nos anos 1980-1990, numa fase mais eclética de sua atuação, produziu álbuns de rock e trilhas para cinema. Ou seja, sempre foi pautado por uma versatilidade própria do mercado consumidor de música.

Da esquerda para a direita: Art Pepper, Wardell Gray, Gene Norman e Shorty Rogers. Imagem do início dos anos 1950. Reprodução: Jazz Times.

Mas foi no ano de 1947 que um projeto musical de Norman se notabilizou. O Just Jazz previa uma série de apresentações no Civic Auditorium, na cidade de Pasadena, Estado da Califórnia. Várias jam sessions foram realizadas sob o selo “apenas jazz” para um público predominante branco e que passava, a partir de então, a ter os primeiros contatos com jazz na costa oeste. Tanto que esse desbravamento do jazz criou pouco mais tarde o gênero conhecido como West Coast, como forma de distinguir de outras formulações e estilos produzidos nos EUA.

No entanto, a sessão do Just Jazz realizada no mês de agosto de 1947 guarda algumas particularidades. Diferentes de todas as outras organizadas por Norman, esta sessão aproxima-se muito daquelas que serão realizadas por Norman Granz, com a JATP. Ou seja, registros mais longos, detalhados e, via de regra, interpretados por um casting bastante eclético, reunindo músicos consagrados com outros poucos conhecidos. Poucos foram os registros fonográficos dessas apresentações, com exceção desta realizada em agosto e que contou com as participações de Lionel Hampton (vibrafone), Willie Smith (sax alto), Corky Corcoran (sax tenor), Charlie Shavers (trompete), Slam Stewart (contrabaixo), Barney Kessell (guitarra), Tommy Toddy (piano) e Lee Young (bateria). Dentre estes músicos, Hampton e Stewart já tinham uma carreira consolidada no jazz desde os tempos das big bands,enquanto os demais eram profissionais que, em geral, trabalhavam acompanhavam outros músicos ou bandas maiores. Mas que a partir de 1950 se consagrarão na corrente West Coast, como é o caso de Charlie Shavers e Shorty Rogers.

Sob a coordenação de Gene Norman, esse grupo foi responsável por uma das mais clássicas perfomances do chamado jazz mainstream, naquela noite de 4 de agosto de 1947, sob a coordenação de Gene Norman. Até mesmo devido ao interesse comercial de seu produtor, as duas sessões do Lionel Hampton and All Stars foram gravadas e prensadas em discos de acetato, num momento em que não era muito comum gravar apresentações ao vivo, devido às limitações técnicas de captação do som dos instrumentos fora do estúdio de gravação. Sem mencionar que a duração de apenas duas canções chegou a exorbitantes 35 minutos! Sendo que o padrão de registro naquela época era de 3 minutos a 3 minutos e meio para cada canção. Ou seja, O disco conseguiu, de certa forma, captar toda a atmosfera de improviso coletivo dos músicos engajados na proposta de Just Jazz. Nota-se ali claramente a premissa para a sessãoser uma peça pedagógica, de educação musical e de audição pública de repertório jazzístico. Mas para que isso ocorresse foi necessário lançar uma só canção em vários volumes – ou vários “lados” dos discos de acetato.

O principal tema apresentado foi “Stardust”, uma composição de autoria de Hoagy Carmichael (1899-1981), registrado por seu autor em 1927. A canção diferentes repertórios do jazz de Chicago, Nova York e Los Angeles. A história da composição é atravessada de várias nuances e interpretações, mas o que sabe é que o tema foi composto por Carmichael quando ainda era estudante de direito na Universidade da Indiana, meados dos anos 1920. Que o acadêmico de direito, filho de família de classe média norte-americana, aproximou-se da música devido à amizade que manteve com Bix Beiderbecke (1903-1931), um exímio trompetista e integrante de bandas de jazz segregadas desde os anos 1920. No anos 1930 o tema passou a fazer parte do repertório de várias big bands, como a de Paul Whiteman, Benny Goodman, Tommy Dorsey, Glenn Miller e Art Shaw – todos músicos brancos. Mas que nos anos seguintes, até mesmo com o advento dos grupos de jazz inter-raciais, o tema ganhou expressividade, inclusive, entre músicos e instrumentistas negros – nos anos posteriores foi interpretada por Dexter Gordon, John Coltrane, Ella Fitzgerald, entre outros e hoje figura como uma das canções mais gravadas na história da música ocidental.

Daí podemos também pressupor o porquê de “Stardust” figurar no repertório da Lionel Hampton and All Stars sob a promoção comercial de Gene Norman e seu Just Jazz:ser uma canção que poderia representar, ainda que simbolicamente aquilo que Frank Driggs chamou de “black beauty, white heat” ou ao se referir a um tipo de integração racial pela música, em que jazz daria o tom com “Stardust”.

Lionel Hampton (vibrafone), Willie Smith (sax alto), Corky Corcoran (sax tenor), Charlie Shavers (trompete), Slam Stewart (contrabaixo), Barney Kessell (guitarra), Tommy Toddy (piano) e Lee Young (bateria) interpretam “Stadust” em seus sublimes 15 minutos de duração. Registro de 04/08/1947. Civic Auditorium. Pasadena/Califórnia.

O interessante a ser percebido com essa audição é o didatismo dos músicos ao apresentar o tema ao público silencioso e opaco que acompanha a “exposição” de cada um dos instrumentistas. Os aplausos são contidos e breves, considerando que a sessão foi registrada dentro de um teatro. Lionel Hampton inicia com os primeiros acordes ao vibrafone que, aliás, era um instrumento pouco usual no jazz até aquele momento. Abre o leque harmônico para que Willie Smith apresente o sax alto em cada frase cuidadosamente sussurrada ao instrumento. Enquanto Smith “fala”, o baixo de Slam Stewart pontua o andamento elegante da composição em conjunto com Lee Young (baterista, irmão do saxofonista Lester Young). No compasso seguinte temos o trompete de Charlie Shavers, que se apresenta aos 3 minutos da gravação fazendo diferentes desenhos ao instrumento, relaxando a embocadura e deixando escapar vibratos mais rústicos e caricatos. Percebe-se pela gravação que o público aprova a brincadeira com risos e alguns aplausos contidos.

Na sequência, Corty Corcoran, com o sax tenor, pontua as mesmas frases de Shavers e Smith. Mas se permite a uma languidez da palheta muito semelhante a da Coleman Hawkins, outro importante tenorista daquela geração. Já próximo dos 7 minutos Slam Stewart inicia seu solo ao contrabaixo, em uníssono cantarolando sempre uma oitava acima do seu instrumento – marca registrada desse músico. Interessante notas que ao final do solo de Stewart há muitos aplausos que são cortados de forma abrupta pelo piano de Tommy Todd, que surge intempestivamente – corte que parece ter sido resultado de edição posterior no registro para facilitar a divisão da sessão em várias partes, em virtude do tamanho do disco de acetato. O mesmo ocorre na passagem do solo de Tommy Todd para o solo de Barney Kessel, à guitarra, pois há outro corte semelhante. Ou que indica que o registro original deveria ter mais de 15 minutos!

Por fim, aos 10 minutos Lionel Hampton se apresenta para o solo ao vibrafone. Um dos solos mais longos nesse registro e que permite apresentar de forma clara a proposta da forma-jazz, os fraseados, as citações de outros standards, mudança de andamento e a demonstração da virtuose ao instrumento percussivo que é vibrafone. Finalmente, a partir dos 13 minutos alguns riffs começam a anunciar o fim da canção e recompõem o tema que, apresentado individualmente em cada instrumento mencionado, organizam-se coletivamente com a intenção de fechar o que seria uma espécie de lição sobre o jazz. Que apesar de todo apelo comercial, da sessão ser pensada para um público específico no longínquo ano de 1947, Just Jazz é uma parte importante da história do jazz e se apresenta ainda como um dos mais importantes momentos de disseminação dessa linguagem musical.

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