Afinal, o que é o jazz?

A proposta do Jazzologia é trazer quinzenalmente ao leitor do Plural algumas questões em torno desse universo musical que convencionamos chamar de jazz

Há de se convir que em terra de Felipe Neto, onde sequer Machado de Assis merece a devida importância literária, falar ou escrever sobre música é uma tarefa das mais desafiadoras. Se demandar leitura de obras literárias representa um esforço na formação dos indivíduos hoje acostumados a textos telegráficos ou diálogos lacônicos, propor uma conversa sobre música pode parecer heresia aos ouvidos incautos. Afinal, música existe para ser ouvida! Por que falar sobre música se ela própria, na sua forma e conteúdo, é a expressão límpida daquilo que sonoramente representa?

Mas se pararmos para observar, como seria possível ouvir uma música (seja uma canção ou mesmo um tema instrumental) se não tivéssemos algo que nos atrai até ela? É evidente que uma sonata de Mozart ou o último hit do streaming que nos captura por sua beleza (ou por sua repulsa!) possui elementos subjetivos dificilmente detectáveis. Mas há também aquele fatores perceptíveis nas estruturas sociais, na formação de um tipo particular de escuta que formam públicos, consumidores e gostos. Sim, quando nos referimos à música nas suas mais variadas tendências e estilos num contexto como nosso – o de mercantilização de obras e produtos culturais – estamos falando de padrão de gosto e construção de fórmulas que permitam a reprodução desse padrão e dessas fórmulas.

Quando fazemos esse exercício, a música deixa simplesmente de ser ouvida e passa a ser “lida” por nós. Movimento que serve para compreender não apenas o que se ouve, mas como e porque se ouve. Como e por que são reproduzidos à exaustão certos compassos de obras de concerto em determinadas ocasiões solenes? Quais, entre tão variado “cardápio” de compositores de música de concerto, são mencionados em detrimento de outros? Por que determinado standard faz sucesso antes mesmo de repercutir em números de vendas álbuns ou shows? Como explicar diferentes padrões de criatividade musical, em geral expressa na noção vaga de “genialidade”. O que aproxima ouvintes e consumidores em torno de determinado compositor, músico ou intérprete ainda que haja escutas diferenciadas na recepção?

Esse preâmbulo se faz necessário porque essa coluna que hoje se inicia seguirá um pouco essa orientação. Não faria sentido ficar aqui a escrever sobre música, mais especificamente o jazz, sem remeter a considerações para além do fenômeno musical e sonoro. Do contrário, seria enfadonho aqui produzir ou reproduzir críticas e verbetes de manuais do jazz e reforçar ainda mais um certo esnobismo característico desse tipo de escrita. Um afetamento desnecessário que faz dessa expressão musical universal – que é o jazz – um reduto de comentaristas de luxo a reforçar o elitismo de seus comentários.

Então, a proposta do Jazzologia é trazer quinzenalmente ao leitor do Plural algumas questões em torno desse universo musical que convencionamos chamar de jazz. Abordaremos livros, biografias, entrevistas, sessões, álbuns (capas, contra-capa, arte e texto), músicos, movimentos, espetáculos, performances etc. sem necessariamente determinar um ponto de partida e um ponto de chegada da escuta. A ideia não é propor uma história do jazz, mas diferentes e variadas aproximações que podemos construir com essa expressão cultural que passa pela música, pela construção de determinados padrões de composições e interpretação, mas não se resume a ela. Porque variadas esferas da produção cultural foram direta ou indiretamente impactadas pelo jazz, a exemplo do cinema, da literatura, das artes visuais e do teatro. É, pois, necessário também considerar essa expansão dos horizontes do jazz para além do culto do músico bandleader ou dos artistas que se consagraram comercialmente e hoje figuram como parte de uma “decoração de interiores”, como som ambiente em salas de espera de consultórios e escritórios mais refinados. De levar em consideração que atrás de uma execução primorosa de uma bigband da década de 1930 havia a interdição de grupos musicais inter-raciais com a proibição de contratação de músicos negros. Ou seu contrário: como a geração de artistas do free-jazz que reestruturou o processo composicional e performático, bem como assumiu posição política radicalmente contra a segregação racial dentro e fora do Estados Unidos.

De Buddy Bolden a Wynton Marsalis, de James P. Johnson a Chick Corea, de Coleman Hawkins a Wayne Shorter, Big Sid Catlett a Paul Motian, de Bessie Smith a Kat Edmonson, de Louis Armstrong a Chet Baker tentaremos ensaiar abordagens em torno desse longo percurso, um pouco nos moldes daquilo que o historiador britânico Eric Hobsbawm chamou de uma “história social do jazz”. Ensaiando formas de se falar sobre o jazz tal como numa conhecida história do pianista Thelonious Monk, que numa ocasião, ao chegar num estúdio para gravação, sentou-se ao piano e começou a tocar sem se dirigir a ninguém e sem pronunciar uma só palavra. Os demais músicos ao perceberem a iniciativa de Monk, juntaram-se a ele num improviso coletivo. Passados vários minutos, eis que o técnico da sala de som interrompe:

– Por que paramos? Perguntou Monk

– Pensei que vocês estavam ensaiando, devolveu o técnico.

– Mas não estamos sempre ensaiando?


A Victor Emanoel Folquening (in memoriam)

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