Opressão só fortalece as facções

Demorou um dia para o discurso raso e beligerante do presidente da República encontrar a realidade. No dia 1º ele declarou aos brasileiros que urge “acabar com a ideologia que defende bandidos e criminaliza policiais”, uma continuidade do tom extremamente ideológico adotado ao longo de 2018. No dia 2 de janeiro, criminosos atearam fogo em dois ônibus em Fortaleza e uma onde de ataques se espalhou por 44 cidades do Ceará. A Força Nacional foi autorizada a atuar no estado por determinação do ministro Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública, que defende abertamente isolar líderes das facções e endurecer as leis penais.

Os ataques coordenados não são novidade no país (vide a paralisação em São Paulo em 2006) e saíram novamente de ordens do sistema penitenciário, protagonista de janeiro pelo terceiro ano consecutivo. Em 2017, 131 presos morreram em três conflitos em Manaus (AM), Boa Vista (RR) e Natal (RN), no auge da ruptura entre o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital. Em 2018, uma rebelião deixou nove mortos em Goiás. Em 2019, o Ceará. São as águas de janeiro enterrando o verão.

Aos poucos o núcleo duro do governo federal deve perceber que ninguém defende a existência de bandidos ou criminaliza o trabalho dos policiais, e que a realidade além-palanque é muito difícil de digerir (envolve confissão de incompetência, por exemplo) e terrivelmente árdua de transformar. Partidarizar a segurança pública é um erro infantil.

Parte da mudança na estrutura da segurança pública e do Judiciário deveria partir de alternativas criminais, aplicação da lei de execução penal (que prevê reequilíbrio social com estudo e trabalho – além de uma cama individual com colchão), diminuir as diferenças sociais, criar mecanismos de acesso ao pleno emprego e revisar a lei de drogas, responsável por tirar indivíduos do mercado comum das ruas e inseri-los no macromercado de ilícitos do continente. O país ainda não experimentou a cidadania no sistema prisional, alcunhado de Estado de Coisas Inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), para assistir passivamente a destruição das relações sociais a partir da lei do mais forte.

As facções surgiram como sindicatos para proteger os presos contra a opressão do Estado. Qual resultado você espera do aumento da opressão?

Nossa democracia tem um Judiciário inconstante, um Legislativo desinteressado na matéria penal e uma força policial imbuída de muita popularidade, na esteira do ORDEM e PROGRESSO, termos facilmente entendidos pelos cidadãos a partir dos programas televisivos que vendem o crime e das religiões. Isso quer dizer que a sociedade separa os cidadãos entre aqueles que podem levar um tiro e aqueles que podem cometer alguns tipos de crimes como trafegar em alta velocidade, sonegar impostos ou desmatar. E aqueles que tiveram passagem pelo sistema penitenciários merecem a terra como destino.

Segurança pública não é equação de lógica, pega-ladrão, provoca-e-revide. O aumento de prisões não significa a diminuição no número de crimes e o crescimento do aparato restritivo do Estado (celas de Regime Disciplinar Diferenciado, corte do sinal de celular, restrição das visitas) não significa a redução automática das ações do crime organizado fora das celas.

Mas no contexto desse janeiro há uma conta bastante lógica. As facções surgiram como sindicatos para proteger os presos contra a opressão do Estado. Qual resultado você espera do aumento da opressão?

O país precisa retomar o controle pelas vias legais, de janeiro a janeiro. Os episódios de 2019 são desafios, testes para averiguar a capacidade de resposta do novo governo. Se ela for estritamente policialesca, há grandes chances do país voltar a bater recordes de homicídios em dezembro. Se ela for coordenada e compartilhada com atores que costumam circundar ao lado do binômio Polícia-Justiça, com inteligência e políticas públicas, Moro e Bolsonaro podem deixar um grande legado ao Brasil. São desafios enormes e que se apresentaram muito cedo ao presidente e ao ministro. Isso quer dizer que eles precisam estabelecer pontes e pavimentar essas estradas.

As armas nunca deveriam chegar antes da Secretaria de Educação e Ação Social nos bairros pobres.

Os acessos e o caminho do bem devem ser mais interessantes para o jovem da periferia do que o crime da esquina, ao mesmo passo em que a punição deve vir acompanhada de tratamento penal qualificado para o criminoso. O jovem da periferia também precisa enxergar o Estado agir sobre o policial que atira a esmo nas comunidades. As armas nunca deveriam chegar antes da Secretaria de Educação e Ação Social nos bairros pobres.

Nenhum país civilizado mantém a sua estrutura carcerária sob a égide do ódio. O brasileiro não deve encarar os 724 mil presos como aqueles portadores de rifles no alto dos morros ou aqueles que passam correndo pelas grandes cidades atrás das correntinhas nos pescoços e de celulares. O sistema é repleto de provisórios (logo, podem ser inocentes), mães, loucos e pobres. Há estupradores, estripadores, sádicos e queimadores de ônibus, obviamente, como em qualquer sistema penitenciário ao redor do globo, mas os países desenvolvidos adotaram como premissa civilizatória cumprir todas as regras internacionais de respeito aos direitos humanos. E assim avançaram.

Qualquer aventura em clima de terror pode nos aproximar muito das Filipinas, mesmo se o discurso oficial vender uma Dinamarca.

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