Sergio Moro: dizendo o certo da maneira errada

Ministro disse que homens agridem mulheres por se sentirem intimidados

Acredito que o atual Ministro da Justiça e ex-Magistrado Sérgio Moro tenha uma meta – estabelecida pelo atual chefe do poder executivo – de absurdos a serem falados por semana. Sendo este o caso, a meta foi batida nesta quarta-feira quando, ao assinar um pacto do governo federal para o combate à violência contra a mulher, o Ministro teria elaborado o seguinte raciocínio: Talvez, nós homens nos sintamos intimidados. Talvez, nós, homens, percebamos que o mundo está mudando e, por conta dessa intimidação, infelizmente, por vezes, recorremos à violência para afirmar uma pretensa superioridade que não mais existe… Não bastasse isso, o comentário foi replicado no twitter – o mecanismo substituto da Voz do Brasil em termos de comunicados oficiais.

Em meio a um discurso que propõe que as mulheres precisam ser protegidas, não por serem mais fracas, mas por serem mais fortes e sofrerem represálias de homens confusos e perdidos, Moro parece errar quando acerta. De fato, um dos principais fatores da violência masculina é a vitimização imaginária de homens diante das mulheres e do mundo de forma geral. Quem trabalha com violência doméstica sabe bem que o recurso à agressão acontece em muitas situações insignificantes, com uma reação desproporcional, violenta e, em muitos casos, fatal por parte do homem. Uma traição, um dinheiro escondido, a negativa de uma relação sexual, a mera paranoia sobre a sexualidade da mulher, muitos são os caminhos que levam ao mesmo desfecho: dor e sofrimento.

Isso não se deve, entretanto, a nada de “novo”, como Moro parece acreditar. Quando ele diz que recorremos à violência para afirmar uma pretensa superioridade que não existe mais, passa a impressão de que o empoderamento feminino é um fenômeno recente e natural, como o inverno menos rigoroso em Curitiba ou a volta da moda da jaqueta jeans. O discurso de que as minorias “acordaram” abafa um histórico de lutas e conquistas que, longe de causar violência como reação apenas, impacta diretamente na busca de redução de tais números. É fundamental que figuras políticas e, inclusive, toda a sociedade conheçam os documentos que levaram à formulação da Lei Maria da Penha e entendam, ainda que minimamente, o caráter estrutural da violência contra a mulher no Brasil e no mundo.

Existe, sim, uma reação contra as conquistas de diversos movimentos sociais, mas esse revanchismo não se traduz apenas na resposta individual de homens aturdidos por mulheres que reclamam dignidade e respeito. O populismo de direita tem como suporte discursivo a vitimização imaginária, ou seja, a falsa percepção de si mesmo como uma vítima quando, em realidade, se está em situação de igualdade ou mesmo de superioridade ante a um outro grupo ou pessoa.

O fato é que afirmar que a violência é uma reação diante de uma mulher que “hoje é superior” tira o foco da vitimização imaginária dos homens.

É essa vitimização imaginária, a qual incita um sujeito a atacar preventivamente um alvo incapaz ou não desejoso de lhe causar um dano significativo, que tem sido o carro-chefe da segurança pública bélica proposta pelo novo governo brasileiro. O mote tem sido encontrar inimigos ou inventá-los, se necessário. Afinal, essa é a Pátria armada Brasil.

Tais palavras não são apenas de minha opinião enquanto criminólogo e facilitador de oficinas com homens autores de violência doméstica. Citando o autor de Homens Brancos Raivosos (Angry White Men), o sociólogo norte-americano Michael Kimmel, temos na atualidade uma falsa minoria política: a dos homens, em especial dos homens brancos heterossexuais, que se vêem “ameaçados” de perder seu lugar no mundo para as diversas iniciativas que promovem igualdade de gênero, raça, classe, sexualidade etc. Dificuldades de ter acesso ao ensino superior? Culpemos o sistema de cotas e as pessoas que dele usufruem. Dificuldade em arranjar emprego? Vamos acusar migrantes e refugiados do Haiti e da Síria de roubarem nossos postos de trabalho. Dificuldade em se sentir homem o suficiente sem trabalho, dinheiro, poder e reconhecimento? É bem mais fácil responsabilizar as mulheres por demandar igualdade, uma vez que elas não se contentam em ser belas, recatadas e do lar.

A dificuldade em “entregar a correspondência para o endereço certo”, como diz Kimmel, é um jogo premeditado para evitar críticas diretas à política econômica. A insatisfação e a dor são reais, mas os culpados não estão na outra ponta do dedo que acusa. Reforma trabalhista aprovada, reforma da previdência correndo a pleno vapor, e o ódio parece continuar sendo direcionado prioritariamente a quem protesta. O fantasma de um homem branco de terno consegue transformar o desprezo por si mesmo de muita gente (ou o endeusamento da própria pele e gênero) em combustível para medidas altamente seletivas de governo. E enquanto uma pequena minoria é beneficiada, uma grande maioria se sente pertencente às fileiras de “bons homens” da nação, já que ser um “bom homem”, às vezes, é o último biscoito simbólico que resta, o consolo do prisioneiro do próprio espelho.

Assim, os homens que recorrem à violência porque se sentem intimidados são a composição da atual política. E, percebam o precioso uso da expressão “se sentem”. Porque basta se sentir intimidado. Basta incomodar-se com a presença de pessoas de diversas etnias, em especial pessoas negras, nas universidades, para que se sinta intimidação em relação a elas, apesar de as vagas de cotas raciais dificilmente chegarem a ser preenchidas.  Basta que uma piada machista seja repreendida em uma reunião de trabalho para que se declare que existe uma ditadura feminista em curso. Basta que um casal do mesmo gênero se beije na rua, como casais heteroafetivos se beijam, para que aflore a suposta intimidação ante a possibilidade de uma homossexualização obrigatória que parece ameaçar, curiosamente, quem se diz detentor da mais intensa orientação sexual hétero.

O que se precisa trabalhar é a gigantesca insegurança desses homens que recorrem à violência. Porque o problema está em se sentir intimidado quando te pedem que você faça o mínimo: respeitar, dividir, tolerar. Cuidar da casa, das crianças, reconhecer privilégios. Perceber a importância de ações estruturais para a reversão de situações históricas de injustiça. É no ato falho do Ministro Moro que o governo mais uma vez declara que o sentimento que guia a atual gestão é o medo, um medo paranoico, que vê a própria identidade se desintegrar quando lhe pedem para enxergar cores que não sejam o verde, amarelo, azul e branco.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

O (des)encontro com Têmis

Têmis gostaria de ir ao encontro de Maria, uma jovem vítima de violência doméstica, mas o Brasil foi o grande responsável pelo desencontro

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima