Yom Hashoá, o Dia do Holocausto: construções e embates pela memória

A memória é também ela uma construção histórica e, consequentemente, dinâmica e recheada de escolhas, parcialidades e ausências. Desejar congelar o passado como um objeto de ritual sacralizado não deixa de ser também uma opção política no presente, a de se recusar a olhá-lo

Em 19 de abril de 1943, grupos de jovens do gueto de Varsóvia davam início ao maior ato de resistência armada de judeus contra os nazistas. O “levante do gueto de Varsóvia”, como ficou conhecido, estava fadado a ser militarmente derrotado – seus participantes estavam cientes disso – e o foi após cerca de quatro semanas de brava resistência com armas rudimentares e quase nenhum treinamento militar.

Mas o levante do gueto inspirou outras revoltas e mais tarde tornou-se um marco de memória. O dia 27 do mês de Nissan do calendário judaico (que, este ano, cai em 28 de abril) se tornaria o dia oficial de lembrança do Holocausto e do Heroísmo (Yom Hashoá ve Hagvurá) em Israel e é lembrado por cerimônias nas comunidades judaicas da diáspora (ou seja, aquelas espalhadas pelo mundo), além de fazer parte do calendário oficial de diversos países.

Memória não é, no entanto, sinônimo de passado, de História, nem de lembrança. Ela é um processo social que articula lembranças, esquecimentos e encadeamentos narrativos, os quais respondem aos desafios do contexto presente que rememora o passado e é atravessado por conflitos e disputas de poder. O significado e atribuição de sentido à rememoração de um passado é algo dinâmico, em constante construção e desconstrução. Assim, uma reflexão por meio de uma perspectiva crítica da História precisa levar em conta essa dimensão. O que, afinal, é lembrado? O que fica de fora? Como construir uma memória relevante para os dias de hoje?

Um início silencioso  

No imediato pós-guerra, a Shoá era percebida pelas potências aliadas vencedoras da Segunda Guerra Mundial como uma dentre inúmeras atrocidades do conflito. As próprias comunidades judaicas também não empreendiam muitos esforços em elaborar memórias coletivas, em um misto de vergonha e foco na reconstrução da vida. Procuravam “deixar o passado para trás”. 

A memória do levante do gueto de Varsóvia foi o primeiro – e por algum tempo, o único – episódio a romper esse silêncio. Em 1949, o primeiro museu construído para ser um memorial ao Holocausto, no kibutz Beit Lohamei Haguetaot, em Israel, fora inaugurado tendo como foco quase exclusivo a revolta, padrão que se tornaria comum em cerimônias e memoriais.

Essa memória afirmava uma narrativa heroica dos rebelados do gueto. Não por acaso, era adotada e encabeçada pelo recém-criado Estado de Israel, que pretendia consolidar um imaginário de um novo judeu, forte, independente, autoconfiante, oposto ao que julgavam ser o judeu diaspórico, fraco, passivo. O Estado de Israel e as instituições comunitárias judaicas pelo mundo escolhiam enaltecer ações em que gostariam de se ver como continuadores. Assim, o tom do Yom Hashoá girava em torno do enaltecimento da nova força judaica e da superação do passado pelo presente.

Em seu tempo, essa memória cumpriu um papel muito importante. Ela contrariava o mito de que os judeus foram como “cordeiros ao matadouro”, inseria as vítimas no rol heroico dos que combateram o nazismo e lhes devolvia protagonismo.

Porém, como toda memória, é preciso se questionar: o que fica de fora? Em primeiro lugar, continuavam silenciados a grande maioria dos sobreviventes, que não se envolveram em resistência armada. Além disso, apesar de já não promover o absoluto silêncio do imediato pós-guerra, essa memória ainda opunha radicalmente presente e passado. A lembrança da derrota do levante se ligava à celebração do sucesso daqueles que se colocam como herdeiros do espírito dos rebelados, sobretudo no Estado de Israel, à sua maneira, nas comunidades judaicas da diáspora e também nos países vencedores da Segunda Guerra Mundial, interessados em propagandear o seu papel de libertadores. Porém, o potencial das memórias fica limitado quando, ao invés de servir para a crítica do presente, serve para seu enaltecimento, ofuscando as contradições e desafios atuais dessas mesmas sociedades.

A memória, contudo, é dinâmica, e essas questões logo viriam à tona.

Filhos de sobreviventes do Holocausto durante a cerimônia de Yom HaShoá de 2017.

O conceito de Resistência se amplia

Esse cenário começou a ser modificado a partir dos anos 1970 e, mais acentuadamente, nos anos 1990, quando a historiografia e os discursos de memória começaram a questionar a tese da passividade dos judeus em cenários que não os de resistência armada. Esses esforços não estão isolados, mas inseridos em uma mudança de perspectiva teórica da historiografia mundial – por exemplo, na mesma época os estudos sobre a história da escravidão no Brasil ampliaram o olhar sobre temas como resistência e protagonismo dos escravizados.

É nesse contexto que surgem definições hoje corriqueiras, como resistência cultural, resistência espiritual e podemos falar de pessoas que mantiveram rituais religiosos, escolas clandestinas ou que contrabandeavam comida, como resistentes. A partir desse momento, essas trajetórias também se tornam “memoráveis”.

Quanto mais múltiplas as experiências lembradas, mais diversas também suas possibilidades de significações e conexões com o presente. Nem todas as narrativas enxergam mais o presente em total ruptura com o passado, apontando também para continuidades e permanências, conectando a memória ao engajamento no presente com questões sensíveis. Como, nos anos 1970, a luta pelos direitos civis, a oposição à guerra do Vietnã, a descolonização da África e as ditaduras militares no Cone Sul do continente americano.

Nos anos 1990, o sucesso do filme “A Lista de Schindler” e a mundialização da memória da Shoá fizeram com que essa multiplicidade de narrativas ganhasse força. Se por um lado, a presença do tema na cultura de massa pode levar a sua despolitização e mercantilização, por outro, emergem narrativas que, a partir do Holocausto, refletem sobre a permanência de mecanismos de opressões, como, por exemplo no Brasil de hoje, o racismo, a intolerância religiosa e a LGBTQIA+fobia.

 O Yom Hashoá permanecia sendo no dia 27 de Nissan, mas não mais somente a resistência armada no gueto era mobilizada. O Holocausto como um todo se tornava parte das memórias judaicas e globais.

E hoje?  

A ampliação do entendimento de resistência durante o Holocausto, verificado a partir dos anos 1970, foi fundamental para romper com o estigma da passividade e com uma perspectiva na qual, com a rara exceção da resistência armada, somente os perpetradores eram, de fato, agentes da história. Porém, por mais que o rol de “histórias memoráveis” tenha sido ampliado, é imprescindível continuar a perguntar: o que fica de fora? Que memória queremos diante de novos desafios do presente?

Seguimos constantemente remodelando as formas de lembrar o Holocausto. Hoje, é preciso pensar em como incluir nas narrativas experiências incômodas, mas necessárias, que não se enquadram nesse paradigma da resistência. Devemos ainda evitar que a justa homenagem aos resistentes se torne um imperativo de resistir (mesmo que em definição ampla); não cabe às vítimas a obrigação de reagir desta ou daquela forma, é sobre os perpetradores que devem recair as cobranças. Finalmente, é necessário problematizar as (auto)afirmações de força e sucesso, que pouco contribuem para a crítica do presente e o combate ao autoritarismo, ao  preconceito e às diferentes formas de discriminação. A construção de um mundo mais fraterno está muito mais ligada a nos conectarmos por meio de nossas vulnerabilidades em comum do que nos igualarmos em nossa força. 

São desafios que ainda envolvem, hoje, a construção de memórias da Shoá e, quando estes forem superados, novos certamente surgirão. A memória é também uma construção histórica e, consequentemente, dinâmica e recheada de escolhas, parcialidades e ausências. O desejo de congelar o passado como um objeto de ritual sacralizado não deixa de ser também uma opção política no presente, a de se recusar a olhá-lo. As estruturas que possibilitaram crimes como o Holocausto permanecem presentes nas sociedades contemporâneas. Que cada Yom Hashoá seja diferente do ano anterior, enquanto sua memória continuar necessária no presente.

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