Há seis anos, durante uma visita de cortesia ao United States Holocaust Memorial Museum, em Washington, perguntei ao staff educativo qual era o principal desafio na mediação das visitas de jovens e dos grupos escolares. A resposta incisiva e quase automática veio do experiente Arthur Berger, então diretor de relações institucionais e responsável pela minha recepção: a fixação pela imagem supostamente monstruosa de Adolf Hitler, a ideia de responsabilidade total por parte dele e sua humanização piedosa. Não foi, de fato, nenhuma surpresa. Era o que eu esperava ouvir.
De forma habitual, acostumamos a deparar-nos, na imprensa em geral, com representações e artigos (antes restritos a agências internacionais, hoje comuns por jornalistas brasileiros) que nos provocam a diagnosticar o fenômeno da obstinação pela figura de Hitler. Um dos recentes e emblemáticos exemplos do crescimento desta obsessão doentia pelo ditador nazista, transformada na representação absoluta do mal, foi a capa da revista IstoÉ que retrata o presidente da República como Adolf Hitler, publicada em outubro de 2021.
Este artigo não se propõe a analisar o conteúdo de possíveis analogias entre ações recentes do governo brasileiro e práticas genocidas, muito menos equiparar seus líderes. Reconhecemos que a discussão é legítima e faz parte do processo contínuo tanto de construção da memória do Holocausto quanto do conhecimento científico a partir da tragédia. Como já destacado nesta coluna, devemos evitar a ideia de que comparar eventos ao nazismo seja proibido, o que contribuiria para uma sacralização do Holocausto.
Contudo, reitero, não se trata do enfoque deste texto, que visa discutir as consequências educativas da compulsão pela culpabilização exclusiva de Adolf Hitler – já contestada por pesquisadores e historiadores sérios. Caso de Ian Kershaw, que, ao contrário de outro biógrafo de Hitler, Joachim Fest, introduziu o conceito de “trabalhar para o Führer” e descartou a discussão sobre a “grandeza histórica” do biografado.
Hitler humano como advertência educativa
Um dos pressupostos da Pedagogia do Holocausto no século XXI aponta para a necessidade de eliminarmos concepções clássicas e intuitivas, como as de que os perpetradores seriam demônios, monstros, seres não humanos ou extraterrestres. Tratar os personagens do nazismo e do genocídio como encarnações do diabo, carregadas de conotações cabalísticas e medievais de “céu” e “inferno”, significaria que a responsabilidade exclusiva de todos os males só poderia ser explicada por razões acima da compreensão humana. Esta perspectiva traz consequências educativas nefastas, como a crença de que seria impossível racionalizar o Holocausto e, consequentemente, compreendê-lo – e, portanto, explicá-lo. Etiquetar Hitler como um monstro e o Holocausto como irracional significa voltá-lo apenas para a lamentação e ao ritual litúrgico, e não para a análise histórica e racional.
Essa incongruência gera perguntas paradoxais: como o Holocausto poderia ser inexplicável e ao mesmo tempo crucial em termos educativos? Como algo poderia ser transmissível e intransmissível ao mesmo tempo? O Holocausto é sim explicável, transmissível e passível de ser racionalizado porque é um evento histórico – e, como tal, configura-se como humano. Praticado por seres humanos: de vítimas a algozes; de salvadores a observadores. Por isso, no caso, é necessário humanizar também os perpetradores.
No entanto, a obstinação em destrinchar a vida pessoal de Hitler, além da busca por explicar o genocídio por meio de passagens sucintas e irrelevantes desse personagem histórico (como a relação dele com sua mãe, por exemplo), o humaniza de uma forma controversa. À primeira vista, esta concepção poderia ser vista como uma oposição ao uso comum dos termos “diabólico” ou “demoníaco” para denominar Hitler. Na verdade, ela apenas o reforça.
Humanizar Hitler não significa criar teses mirabolantes para explicar o Holocausto por meio de sua ordinária trajetória pessoal, e sim entender a responsabilidade histórica de todos os perpetradores, de alto e de baixo escalão. Hitler, Himmler, Goebbles, Eichmann, Göring e Amon Göth eram humanos, nós também. Tinham pais, mães, esposas e filhos. A advertência pedagógica primordial, portanto, é que esses atos podem ser repetidos, em certas circunstâncias, por qualquer um. Possuíamos a semente.
A parcela do compromisso do ditador perante o Holocausto é alta, porém complexa. Ela deve ser alcançada por modelos de representação (humanos) e pelo viés racional e metodológico. A necessidade de desconstrução da imagem obcecada por Hitler remete a uma natureza educativa de alerta. Pequenos exemplos de ódio, intolerância e discriminação acontecem todos os dias, na nossa frente.
A satírica “Lei de Godwin”
Uma consequência dessa obsessão quase patológica que a sociedade possui pela figura de Hitler é a “Lei de Godwin”, uma teoria satírica do jurista norte-americano Mike Godwin criada em 1990, ainda nos primórdios da popularização da internet. “À medida que uma discussão online se alonga, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou os nazistas tende a 100%”, escreveu. Existe, em sua teoria retórica, o consenso de que, primeiramente, a comparação simplória (e ao mesmo tempo hiperbólica) é um evento recorrente e muitas vezes previsível. Em segundo lugar, seria sempre usada no momento oportuno (chamado de “ponto Godwin”) em que todos os argumentos já foram esgotados. É simples: no fim da discussão, basta xingar o outro de Hitler.
No Brasil, essa “lei” já saiu do controle – e é usada já no início, e não no fim das discussões. O lema “todo mundo que eu não gosto é Hitler” (“Everyone I Don’t Like Is Hitler”), fruto de um meme criado em 2015 no Facebook, é o resumo da apropriação irracional de sua figura, que se transformou na metonímia do mal absoluto. As pessoas querem encerrar (e às vezes até começar) debates acusando o outro de Hitler, por mais que analogias possam e devam ser feitas de forma criteriosa. Caso contrário, além de vulgarizar o próprio evento histórico e desrespeitar vítimas e seus descendentes, a comparação não contribuiria na formação de uma memória coletiva universal e justa do Holocausto.
Ninguém é guardião da memória, o que reforça o nazismo como paradigma importante para reflexões acerca de genocídios, democracia e direitos humanos. No entanto, continua curiosa e digna de aprofundamentos a obstinação em invocar constantemente a imagem de Hitler no debate público. Como destacado pelo historiador Yehuda Bauer e reiterado pelo trabalho educativo do Museu do Holocausto de Curitiba, um dos passos da transmissibilidade é tratar os perpetradores de forma responsável, utilizando modelos humanos e sempre com os olhos voltados ao nosso próprio futuro.