Sexualidade e implicações socioeducacionais em O Diário de Anne Frank

O diário da adolescente que queria ser escritora traz relatos profundos que misturam a narrativa histórica e o cotidiano da vida privada, demonstrando claramente um registro de alguém que pretendia se comunicar com o mundo

Esse poderia ser um texto sobre as diferenças entre as publicações das versões A e B de O Diário de Anne Frank, obra traduzida para cerca de 70 línguas, adaptada para o cinema e uma das mais famosas e lidas do mundo. Porém, a análise a qual se pretende aqui tem um caráter mais social e educacional, que em maior ou menor grau está relacionada às versões, como se essas estivessem atendendo ao contexto do momento em que foram publicadas.

Recentemente, esteve presente na mídia uma falsa polêmica a respeito de uma versão em quadrinhos do diário. O fato envolveu um grupo de pais de uma escola particular em São Paulo, que alegava ter o livro um conteúdo impróprio, que traria, em si, certa erotização. Situação para a qual a própria escola se posicionou, alegando estar a leitura ligada a um projeto maior e destacando que o conteúdo “inapropriado” questionado pelos pais compreendia 9% de toda a obra.

O diário da adolescente que queria ser escritora traz relatos profundos que misturam a narrativa histórica e o cotidiano da vida privada, demonstrando claramente um registro de alguém que pretendia se comunicar com o mundo. O livro pode ser encontrado na íntegra em livrarias e bibliotecas, mas também em fragmentos dentro de materiais didáticos que o trazem como referência para ilustrar algum conteúdo, seja ligado ao Holocausto ou mesmo ao gênero textual diário. Talvez por isso, muitos estudantes tenham acesso à obra conhecendo-a em partes, e a partir dela entram em contato com o Holocausto, ou se identificam com relatos bem característicos da adolescência. E aqui está o ponto de onde se pretende partir.

Essa situação abre espaço para duas reflexões importantes: a primeira relacionada ao que os pais verdadeiramente conhecem sobre a adolescência de seus filhos, e a segunda sobre o papel importante de projetos que estejam bem alinhados com a proposta curricular das instituições de ensino.

Mesmo em pleno século XXI, parece que a sexualidade ainda é um assunto delicado e, por vezes, constrangedor. O que muitos parecem desconhecer é que a sexualidade está presente no ser humano mesmo antes dele nascer, já que está ligada a toda ação ou expressão que transmite prazer entre as pessoas. Isso significa que a sexualidade faz parte de todas as fases do desenvolvimento humano e que é um dos importantes aspectos da adolescência. O psiquiatra Carlos Luiz Osório afirmou que é na adolescência que a formação da personalidade está na etapa final de estruturação e que a sexualidade, neste momento, funciona como um elemento estruturador da identidade.

Logo, os trechos da obra apontados como “impróprios” nada mais são do que inquietações da adolescência e estão presentes nas conversas entre jovens. A questão que se forma não é se os trechos trazem em si erotização ou não, mas por que tais trechos incomodaram tanto num contexto atual onde o acesso à informação ou desinformação acerca da sexualidade se dá de maneira fácil e rápida por diversos meios. Outra pergunta também pertinente seria por que diante de tantos outros fatos relatados na obra, esses (que representam uma parte muito pequena) foram os que mais chamaram atenção? Talvez essas questões façam pensar o quanto, mesmo com toda tecnologia, com todo o acesso à informação, alguns assuntos ainda são tabus e impactam diretamente no comportamento social.

Como escreveu o jornalista e escritor Renato Dantas: “podar as poucas confissões íntimas da autora é sabotar sua obra, roubar sua humanidade, sua adolescência, sabotar a empatia do processo de leitura, é calar Anne Frank novamente, o que o Holocausto fez a tantos judeus e judias. Deixem Anne Frank falar conosco”. O Diário é um espelho para a sociedade, para qualquer geração de jovens, de qualquer época. A discussão extrapola o texto da adolescente que, mesmo em meio a um contexto absolutamente anormal, aborda as transformações sobre seu corpo e o olhar ao seu entorno.

A segunda reflexão proporcionada pela controvérsia criada por esses pais remete à importância de se ter nas instituições de ensino projetos educativos que caminhem em consonância com seu próprio Projeto Político Pedagógico (PPP). Uma construção coletiva de um projeto baseado numa leitura crítica da realidade em que está inserido e que dialoga com o PPP cria condições para a superação das situações limites. Nesse caso, a questão girou em torno de relatos da sexualidade da Anne, mas em quantas outras escolas a discussão não se dá justamente no ensino do próprio Holocausto como algo impróprio para crianças e jovens?

Mesmo com a existência de um número significativo de ações que tratam desse ensino, ainda é comum verificar certa insegurança de pais, professores e estudantes quando o assunto é o Holocausto. Talvez porque a primeira impressão seja aquela dos documentos que traziam imagens de pilhas de corpos e câmaras de gás, ignorando que uma proposta significativa acerca do ensino do genocídio perpassa por outros aspectos desse fato histórico. A trajetória de Anne Frank é um exemplo dessa nova perspectiva. Estudantes que aprendem sobre as histórias do Holocausto a partir de um relato pessoal, como é o caso do diário, voltam a sua perspectiva para a vida em contraposição à morte. Narrativas pessoais criam empatia e fazem com que os estudantes se identifiquem com outros indivíduos, seja pela linguagem, pelo estilo de vida, pelas situações cotidianas, ou outros elementos que dialogam com sua própria realidade. E a sexualidade é parte inerente desse processo.

Quando a escola cria um projeto, como foi o caso da instituição envolvida na contestação daqueles pais, que tem por objetivo discutir questões ligadas à memória de um fato histórico como o Holocausto e está ancorada em práticas pedagógicas diversas, significativas e consistentes, torna-se muito mais fácil explicar a sua relevância quando necessário. Além disso, quando a comunidade escolar está consciente da importância de um projeto, seja ele qual for, esse trabalho deixa de ser de uma determinada disciplina e passa a ser de toda uma instituição, onde professores, pais e estudantes colaboram para sua efetivação e garantia de bons resultados.

Há que se ampliar o olhar para trabalhos que envolvem elementos do Holocausto, porque estes falam para além do fato histórico: falam da vida de pessoas comuns (crianças, adolescentes na puberdade, adultos, idosos), de seus sonhos, desejos, medos e projetos que, em maior ou menor grau, se assemelham aos de milhares de outras pessoas do tempo presente.

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