Redações e cursos de Comunicação, coragem!

Em 1943, o ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels, sugeriu que qualquer homem que tivesse um pouco de honra teria muito cuidado antes de se tornar jornalista. Quase 80 anos depois, num mundo polarizado, a honra e a coragem destes profissionais revelam-se determinantes para a manutenção da democracia

Tão logo Adolf Hitler recebeu, em setembro de 1919, o cartão provisório de sócio número sete do então Partido Trabalhista Alemão, que em fevereiro de 1920 se transformaria no Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), ou simplesmente Partido Nazista, ele tomou conta da direção de propaganda da agremiação. “Eu tinha este setor, naquele momento, como o mais importante de todos”, revelaria no seu livro Mein Kampf (Minha Luta), publicado em 1925.

Na obra, num dos dois capítulos destinados ao tema, Hitler sugere que a propaganda seria um meio para se chegar a determinado fim, devendo ocupar-se de linguagem adequada às massas e da repetição de conceitos/ideias, explorando, se possível, os medos das pessoas, sem, necessariamente, fazer um estudo objetivo da verdade, sempre que essa pudesse favorecer o inimigo.

Os conceitos do ditador, que em 1933 se tornaria chanceler alemão e, no ano seguinte, Führer (líder) do III Reich, conduzindo a Alemanha à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e perpetrando o Holocausto, que mataria 6 milhões de judeus, além de outros grupos perseguidos, foram fielmente seguidos pelo seu correligionário e futuro ministro da Propaganda, Joseph Goebbels.

Coube ao ex-jornalista transformar, antes mesmo da chegada dos nazistas ao poder, a propaganda em peça-chave da narrativa, que visava, com apoio dos meios de comunicação disponíveis (destaque para rádio, cinema e impressos), a construção do culto ao “mito Hitler”, além do combate às “raças inferiores”, especialmente os judeus, e aos partidos de esquerda, como os comunistas, inimigos políticos dos nazistas.

Adolf Hitler. Foto: reprodução.

As mensagens variavam de “Brot und Arbeit” (Pão e Trabalho), dirigido ao medo de desemprego da classe trabalhadora; passando pelo poster “Mutter und Sohn (Mãe e Filho), retratando os ideais relacionados à mulher; até o slogan que marcava o ideal supremo: “Ein Volk, Ein Reich, Ein Führer” (Uma Nação, um Império, um Líder).

Para tanto, ao longo da década de 1920 e começo de 1930, apesar de campanhas e ações radicais – que segundo Hitler tinham a intenção de selecionar à causa, entre as pessoas comuns, apenas aquelas que se identificassem com o movimento – Goebbels contaria com a benevolência e o silêncio de quase toda a imprensa germânica, seja por interesses financeiros, questões ideológicas ou erros de avaliação quanto ao perigo que se desenhava; e poucos pareciam enxergar.

Entre aqueles que, desde o início (mais precisamente em 1921), identificaram no discurso nazista uma ameaça à imberbe democracia alemã, destacou-se o pequeno jornal de Munique Münchener Post, classificado pelo tirano como a “Cozinha Venenosa” – assim chamado por Hitler em razão das críticas disparadas pelo periódico contra o Partido da Suástica e o jovem Adolf, que costumava qualificar como venenoso tudo o que odiava (para saber mais, vale a leitura do livro A Cozinha Venenosa, da jornalista Silvia Bittencourt – Editora Três Estrelas).

Além do Post – que teve sua redação destruída mais de uma vez por simpatizantes da extrema-direita o longo de sua existência, e que acabaria com as portas fechadas pelos camisas pardas da SA (tropas de assalto) em 9 de março de 1933, menos de 40 dias após a chegada dos nacional-socialistas ao poder, alguns outros jornais e poucas figuras da imprensa ousaram erguer a voz contra os virulentos seguidores do nazi-fascismo.

Um deles foi Carl Fritz Gerlich, jornalista, arquivista e editor de jornais como o Münchner Neueste Nachrichten (Últimas Notícias de Munique) e o Der Gerade Weg (O Caminho Certo) e que, de simpatizante da direita política, parece ter ‘virado o fio’ após o putsch da cervejaria de Munique, em 1923, no qual Hitler fracassou ao tentar derrubar a República de Weimar (o que o levou à prisão por nove meses – período em que escreveu Mein Kampf).

Diferente dos membros do Münchener Post, que, embora tenham perdido seus empregos, mantiveram-se vivos (alguns passaram tempos em campos de concentração, sendo posteriormente liberados, deixando a Alemanha; outros, inclusive, buscaram nova colocação, como Edmund Goldschagg, editor de política do Post que ajudou a fundar, em 1945,o Süddeutsche Zeitung, hoje um dos maiores jornais da Alemanha); Gerlich não teve tanta sorte – e acabou sendo preso em 1933 e assassinado no campo de concentração de Dachau, em 30 de junho de 1934, durante a Noite das Facas Longas (expurgo do NSDAP contra uma facção do partido, episódio que também eliminaria proeminentes antinazistas).

Hoje, talvez mais do que nunca desde a queda do nazismo, em 1945, é a honra e o trabalho dos jornalistas que podem auxiliar na preservação e fortalecimento do sistema democrático, ameaçado por arroubos autoritários de diferentes espectros ideológicos distribuídos pelo globo – e que não pode ser, como na Alemanha nazista, normalizado, no que se configurou chamar de “Gleichschaltung”.

Honra e democracia

A ascensão do Partido Nazista ao poder – obtida por meio das urnas -, indica que as instituições democráticas podem ser frágeis em face do ódio organizado. Além disso, mostra que o controle da população é passível de ser arrebatado não somente com o uso da violência, mas também por formas sutis de repressão, que limitam a capacidade da população se mobilizar contra o governo. Nesse último caso, o controle da imprensa, restrições à liberdade de expressão e pensamento, e o aparelhamento de órgãos, como o judiciário, polícia e o legislativo, configuram-se perigos reais.

Afinal, como alerta o historiador do Holocausto, Yehuda Bauer, “a humanidade nunca aprende com o passado. Em geral, as pessoas não veem além do seu próprio nariz. É o nosso destino enquanto humanos. Somos parentes dos chimpanzés, mas eles não têm este problema”, diz.

Assim, embora o Ranking da Liberdade de Imprensa 2021, elaborado pela Repórteres Sem Fronteira (RSF), indique que o jornalismo está sendo cada vez mais cerceado – 130 países estão classificados entre os níveis ‘sensível, difícil (como é o caso do Brasil, que aparece na 111.ª posição entre 180 nações), e grave para o trabalho da imprensa – é fundamental que os profissionais da área, de veículos tradicionais ou independentes, e os acadêmicos dos cursos de Comunicação Social, busquem inspiração na “Cozinha Venenosa” para não calar jamais – olhando além do próprio nariz, produzindo informação correta, responsável e plural, capaz de, com credibilidade, fiscalizar e cobrar os detentores de poder quanto a temas como igualdade de direitos (evitando ondas nacionalistas de privilégio branco ou discursos antissemitas, por exemplo), políticas de inclusão social ou a transparência nas ações governamentais.

Joseph Goebbels. Foto: reprodução.

Essa coragem permitirá contrapor, no presente, reflexão do próprio Joseph Goebbels, que em 14 de abril de 1943, escreveu em seu diário: “Qualquer homem que ainda tenha um resíduo de honra terá muito cuidado para não se tornar um jornalista”.

Hoje, talvez mais do que nunca desde a queda do nazismo, em 1945, é a honra e o trabalho dos jornalistas que podem auxiliar na preservação e fortalecimento do sistema democrático, ameaçado por arroubos autoritários de diferentes espectros ideológicos distribuídos pelo globo – e que não pode ser, como na Alemanha nazista, normalizado, no que se configurou chamar de “Gleichschaltung”.

Falar para as massas lutando contra as mentiras, grandes e pequenas – seja em veículos impressos, emissoras de rádio e TV, blogs, canais nas redes sociais e portais de notícias, é, sim, heroico e inspirador. Contudo, acima disso, é necessário.

Em regra, somos mais evoluídos do que chimpanzés; precisamos, todavia, sermos melhores – e mais claros, objetivos e eficientes – do que os nazistas ou em relação àqueles que flertam com suas doutrinas. Eis, uma boa luta. Eis, nossa luta.


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Pequenas coisas – mas não dá pra esquecer

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