Tão logo Adolf Hitler recebeu, em setembro de 1919, o cartão provisório de sócio número sete do então Partido Trabalhista Alemão, que em fevereiro de 1920 se transformaria no Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), ou simplesmente Partido Nazista, ele tomou conta da direção de propaganda da agremiação. “Eu tinha este setor, naquele momento, como o mais importante de todos”, revelaria no seu livro Mein Kampf (Minha Luta), publicado em 1925.
Na obra, num dos dois capítulos destinados ao tema, Hitler sugere que a propaganda seria um meio para se chegar a determinado fim, devendo ocupar-se de linguagem adequada às massas e da repetição de conceitos/ideias, explorando, se possível, os medos das pessoas, sem, necessariamente, fazer um estudo objetivo da verdade, sempre que essa pudesse favorecer o inimigo.
Os conceitos do ditador, que em 1933 se tornaria chanceler alemão e, no ano seguinte, Führer (líder) do III Reich, conduzindo a Alemanha à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e perpetrando o Holocausto, que mataria 6 milhões de judeus, além de outros grupos perseguidos, foram fielmente seguidos pelo seu correligionário e futuro ministro da Propaganda, Joseph Goebbels.
Coube ao ex-jornalista transformar, antes mesmo da chegada dos nazistas ao poder, a propaganda em peça-chave da narrativa, que visava, com apoio dos meios de comunicação disponíveis (destaque para rádio, cinema e impressos), a construção do culto ao “mito Hitler”, além do combate às “raças inferiores”, especialmente os judeus, e aos partidos de esquerda, como os comunistas, inimigos políticos dos nazistas.
As mensagens variavam de “Brot und Arbeit” (Pão e Trabalho), dirigido ao medo de desemprego da classe trabalhadora; passando pelo poster “Mutter und Sohn (Mãe e Filho), retratando os ideais relacionados à mulher; até o slogan que marcava o ideal supremo: “Ein Volk, Ein Reich, Ein Führer” (Uma Nação, um Império, um Líder).
Para tanto, ao longo da década de 1920 e começo de 1930, apesar de campanhas e ações radicais – que segundo Hitler tinham a intenção de selecionar à causa, entre as pessoas comuns, apenas aquelas que se identificassem com o movimento – Goebbels contaria com a benevolência e o silêncio de quase toda a imprensa germânica, seja por interesses financeiros, questões ideológicas ou erros de avaliação quanto ao perigo que se desenhava; e poucos pareciam enxergar.
Entre aqueles que, desde o início (mais precisamente em 1921), identificaram no discurso nazista uma ameaça à imberbe democracia alemã, destacou-se o pequeno jornal de Munique Münchener Post, classificado pelo tirano como a “Cozinha Venenosa” – assim chamado por Hitler em razão das críticas disparadas pelo periódico contra o Partido da Suástica e o jovem Adolf, que costumava qualificar como venenoso tudo o que odiava (para saber mais, vale a leitura do livro A Cozinha Venenosa, da jornalista Silvia Bittencourt – Editora Três Estrelas).
Além do Post – que teve sua redação destruída mais de uma vez por simpatizantes da extrema-direita o longo de sua existência, e que acabaria com as portas fechadas pelos camisas pardas da SA (tropas de assalto) em 9 de março de 1933, menos de 40 dias após a chegada dos nacional-socialistas ao poder, alguns outros jornais e poucas figuras da imprensa ousaram erguer a voz contra os virulentos seguidores do nazi-fascismo.
Um deles foi Carl Fritz Gerlich, jornalista, arquivista e editor de jornais como o Münchner Neueste Nachrichten (Últimas Notícias de Munique) e o Der Gerade Weg (O Caminho Certo) e que, de simpatizante da direita política, parece ter ‘virado o fio’ após o putsch da cervejaria de Munique, em 1923, no qual Hitler fracassou ao tentar derrubar a República de Weimar (o que o levou à prisão por nove meses – período em que escreveu Mein Kampf).
Diferente dos membros do Münchener Post, que, embora tenham perdido seus empregos, mantiveram-se vivos (alguns passaram tempos em campos de concentração, sendo posteriormente liberados, deixando a Alemanha; outros, inclusive, buscaram nova colocação, como Edmund Goldschagg, editor de política do Post que ajudou a fundar, em 1945,o Süddeutsche Zeitung, hoje um dos maiores jornais da Alemanha); Gerlich não teve tanta sorte – e acabou sendo preso em 1933 e assassinado no campo de concentração de Dachau, em 30 de junho de 1934, durante a Noite das Facas Longas (expurgo do NSDAP contra uma facção do partido, episódio que também eliminaria proeminentes antinazistas).
Honra e democracia
A ascensão do Partido Nazista ao poder – obtida por meio das urnas -, indica que as instituições democráticas podem ser frágeis em face do ódio organizado. Além disso, mostra que o controle da população é passível de ser arrebatado não somente com o uso da violência, mas também por formas sutis de repressão, que limitam a capacidade da população se mobilizar contra o governo. Nesse último caso, o controle da imprensa, restrições à liberdade de expressão e pensamento, e o aparelhamento de órgãos, como o judiciário, polícia e o legislativo, configuram-se perigos reais.
Afinal, como alerta o historiador do Holocausto, Yehuda Bauer, “a humanidade nunca aprende com o passado. Em geral, as pessoas não veem além do seu próprio nariz. É o nosso destino enquanto humanos. Somos parentes dos chimpanzés, mas eles não têm este problema”, diz.
Assim, embora o Ranking da Liberdade de Imprensa 2021, elaborado pela Repórteres Sem Fronteira (RSF), indique que o jornalismo está sendo cada vez mais cerceado – 130 países estão classificados entre os níveis ‘sensível, difícil (como é o caso do Brasil, que aparece na 111.ª posição entre 180 nações), e grave para o trabalho da imprensa – é fundamental que os profissionais da área, de veículos tradicionais ou independentes, e os acadêmicos dos cursos de Comunicação Social, busquem inspiração na “Cozinha Venenosa” para não calar jamais – olhando além do próprio nariz, produzindo informação correta, responsável e plural, capaz de, com credibilidade, fiscalizar e cobrar os detentores de poder quanto a temas como igualdade de direitos (evitando ondas nacionalistas de privilégio branco ou discursos antissemitas, por exemplo), políticas de inclusão social ou a transparência nas ações governamentais.
Essa coragem permitirá contrapor, no presente, reflexão do próprio Joseph Goebbels, que em 14 de abril de 1943, escreveu em seu diário: “Qualquer homem que ainda tenha um resíduo de honra terá muito cuidado para não se tornar um jornalista”.
Hoje, talvez mais do que nunca desde a queda do nazismo, em 1945, é a honra e o trabalho dos jornalistas que podem auxiliar na preservação e fortalecimento do sistema democrático, ameaçado por arroubos autoritários de diferentes espectros ideológicos distribuídos pelo globo – e que não pode ser, como na Alemanha nazista, normalizado, no que se configurou chamar de “Gleichschaltung”.
Falar para as massas lutando contra as mentiras, grandes e pequenas – seja em veículos impressos, emissoras de rádio e TV, blogs, canais nas redes sociais e portais de notícias, é, sim, heroico e inspirador. Contudo, acima disso, é necessário.
Em regra, somos mais evoluídos do que chimpanzés; precisamos, todavia, sermos melhores – e mais claros, objetivos e eficientes – do que os nazistas ou em relação àqueles que flertam com suas doutrinas. Eis, uma boa luta. Eis, nossa luta.
Para ir além
Sobre o/a autor/a
Salus Loch
jornalista, escritor e integrante do departamento de Comunicação do Museu do Holocausto de Curitiba.