Perda icônica reacende discussão: como educar sem sobreviventes?

Nos aproximamos de um momento crucial na construção da memória universal desse genocídio: aquele em que as gerações futuras não mais terão a oportunidade de ouvir relatos e testemunhos cara-a-cara, ao vivo, de vítimas do Holocausto que reconstruíram suas vidas próximos de nós

Descansou na última semana, aos 94 anos, nosso compatriota Andor Stern, conhecido como o único brasileiro nato sobrevivente do Holocausto cometido pelos nazistas e seus colaboradores – o que não é historicamente autêntico, já que outros nomes foram levantados pela equipe do museu e pela pesquisadora Blima Rajzla Lorber. No entanto, fato é que a figura cativante do senhor Andor e seu impressionante depoimento oral tornaram-se amplamente conhecidos no Brasil nos últimos anos, de conversas com estudantes a participações em programas de TV. Era impossível sair alheio à reflexões após ouvir sua fala simples carregada de esperança, de otimismo e de sabedoria. Uma perda icônica para todos nós. Ao agradecer por usar sapatos confortáveis e ter lençóis limpos todos os dias, por exemplo, ele nos presenteava com frases que pareciam ter saído das páginas dos livros sagrados do povo judeu: “cada dia que eu vivo é uma sobremesa”.

Existem ainda entre 350 mil e 400 mil sobreviventes vivos espalhados pelo mundo – cerca de 160 mil deles vivendo em Israel. No Brasil, os números sempre foram incertos e baseados em estimativas. Aqui, enquanto esta coluna está sendo escrita e de acordo com a Base Nacional Integrada criada pelo Museu do Holocausto de Curitiba, existem 299 sobreviventes vivos conhecidos – número que é certamente diferente em razão da quantidade de registros com status desconhecido, daqueles que faleceram recentemente e ainda não é de nosso conhecimento e, obviamente, dos que não foram “descobertos”. Do total, a maioria vive no estado de São Paulo – 215 – e já está em idade bastante avançada.

Uma conhecida frase judaica, que é vista como uma benção e até como um ditado popular, clama por vida longa. A expressão “que viva até os 120 anos”, que tem origem nos textos bíblicos (um deles aponta que seria este o número de anos vividos pelo profeta Moshe), é comumente dita em aniversários, celebrações e recuperações de doenças. Pois bem. Pensemos, almejemos e acreditemos utopicamente que todos os sobreviventes do Holocausto que ainda habitam esse plano vivam até os 120 anos. Mesmo assim, nos aproximamos de um momento crucial na construção da memória universal deste genocídio: aquele em que as gerações futuras não mais terão a oportunidade de ouvir relatos e testemunhos cara-a-cara, ao vivo, de vítimas do Holocausto que reconstruíram suas vidas próximos de nós.

O que será da transmissão e da educação sobre o Holocausto quando esse momento chegar? Como garantir que aqueles que ainda não nasceram compreendam e utilizem os legados que construímos a partir da tragédia? Infelizmente, o saudoso Andor Stern Z”L e tantos outros têm nos deixado, em ritmo mais preocupante nos últimos dois anos em razão da pandemia de covid-19. E o que será da memória do Holocausto? Como educar sem sobreviventes?

Atingindo novos públicos

Educar não é reproduzir receitas previamente prontas. Envolve compreender, ressignificar e decodificar tanto os contextos quanto as necessidades que cada assunto tem em se conectar com novas realidades. Com o Holocausto, não é diferente. Museus, centros de pesquisa, instituições comunitárias e iniciativas educativas têm discutido o futuro da transmissão baseados na inevitável perda do testemunho presencial e no desafio de alcançar um público jovem – chamado por nós, de maneira genérica, de “novas gerações”.

Recordemos do projeto “Eva´s stories”, uma produção audiovisual criada em 2019 pelo empresário israelense Mati Kochavi e que conta com 70 episódios nos stories do Instagram. O produto é inspirado no diário real da jovem judia Eva Heyman, assassinada no complexo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, em outubro de 1944. Os stories se iniciam com relatos cotidianos da adolescente de 13 anos e vão até momentos antes de sua morte.

Houve críticas de especialistas, que viam do desrespeito até um possível caminho que levaria a selfies de visitantes nos portões de Auschwitz. Analiso de forma distinta. A educação não pode discriminar a tecnologia, que deve ser uma aliada para nós educadores. E não se trata de uma discussão sobre ser ou não ficcional, e sim utilizar ferramentas que se comuniquem de forma mais eficiente e assertiva com as tais “novas gerações” – e com produções responsáveis. Caso da conta aberta em 2020 pelo Museu do Holocausto de Curitiba no aplicativo TikTok, fenômeno singular que transformou a forma dos jovens se comunicarem nas redes sociais.

Em poucos meses, mais de 25 mil pessoas passaram a seguir e a interagir com a página do Museu no TikTok, que publica diariamente pequenos vídeos criados especialmente para a plataforma. A jovem equipe do departamento de Comunicação cria os roteiros, grava e edita o produto final, com suporte dos historiadores e de outras áreas da instituição. Seria essa a solução para um futuro próximo sem sobreviventes?

Max Glauben, sobrevivente do Holocausto que vive em Dallas, nos Estados Unidos. Foto: reprodução.

Tecnologia e pluralidade

Não existe uma solução única. Seguiremos trabalhando de forma multi e transdisciplinar, nos ancorando na literatura universal e nos registros históricos coletados e sistematizados pelos cientistas nas últimas décadas. Enquanto isso, os anos passam e continuamos a utilizar a tecnologia a nosso favor.

Alguém já conversou com um holograma 3D? Já tinha lido e visto bastante sobre um projeto audacioso da USC Shoah Foundation, um instituto de História Visual e Educação criado em 1994 pelo diretor Steven Spielberg, chamado “Dimensions in Testimony” (“Dimensões em Testemunho”). Tratam-se, a priori, desobreviventes do Holocausto posicionados em poltronas em um estúdio cheio de câmeras de alta definição e luzes para capturá-los de vários ângulos. O resultado é uma inteligência artificial com recursos interativos e tecnologia de reconhecimento de voz. Na prática, seria como se uma pessoa estivesse sentada à sua frente e você pudesse interagir com ela por meio de perguntas.

Em março de 2022, durante uma visita técnica ao Dallas Holocaust and Human Rights Museum, nos Estados Unidos, tive a oportunidade de interagir com essa ferramenta. No caso, conversar com o holograma do senhor Max Glauben, sobrevivente do Holocausto, de 94 anos e que ainda vive com a família em Dallas. O projeto pioneiro utiliza técnicas avançadas de filmagem, tecnologias de exibição e processamento de linguagem de última geração para criar uma biografia interativa em tempo real. São mais de mil respostas possíveis na base de dados, o que gera um resultado espantoso.

A ideia surgiu há vários anos e partiu da percepção óbvia de que logo não haverá sobreviventes para contarem suas histórias. Os responsáveis dizem que “não se trata da tecnologia pela tecnologia”. Entendo. Não existe a pretensão em substituir o testemunho cara-a-cara. Os hologramas e a inteligência artificial resolverão todos os problemas da construção da memória? Não. Mas são novas ferramentas que chegam para somar.

Nem todos teremos, hoje, a possibilidade de contar com soluções científicas dispendiosas como o “Dimensions in Testimony”. No entanto, o potencial temático e transformador que o Holocausto nos proporciona, aliado à busca pela atenção de novos públicos e o desenvolvimento arrebatador da tecnologia, nos vislumbram um futuro promissor para a construção dessa memória – mesmo sem os sobreviventes aqui presentes, fato natural da vida. Importante é que novas propostas educativas sejam constantemente concebidas e delapidadas, evitando que a extinção do testemunho ao vivo nos alcance de surpresa. Como em toda memória, há muito caminho pela frente.

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