Os Protocolos dos Sábios do Sião: uma mentira desvendada há 100 anos

Obra apresenta supostas atas de uma reunião secreta de obscuras lideranças judaicas tramando para dominar o mundo

100 anos atrás, entre os dias 16 e 18 de agosto de 1921, uma série de reportagens do jornalista Philip Graves no jornal britânico The Times desmascarava Os Protocolos dos Sábios de Sião como uma fraude. Diante do avanço de teorias conspiratórias na atualidade, é fundamental revisitar este caso.

Os Protocolos dos Sábios de Sião é um dos livros antissemitas mais conhecidos no mundo e uma das teorias conspiratórias mais influentes da história. Esta obra apresenta supostas atas de uma reunião secreta de obscuras lideranças judaicas tramando para dominar o mundo. Judeus estariam, por séculos, por trás dos principais processos de transformação social. Controlariam das altas finanças aos movimentos revolucionários (cujos interesses opostos serviriam somente para mascarar a terrível conspiração), exercendo um poder oculto na política, na economia e na cultura, cujo objetivo seria a destruição do mundo cristão, a desagregação da estrutura social tradicional e o estabelecimento de um domínio judaico sobre o planeta.

As reportagens demonstravam que os Protocolos eram um plágio grosseiro do livro O Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu, de Maurice Joly, publicado na França em 1864, com temática completamente distinta.

Por que, mesmo sendo uma teoria sem nexo e mesmo após comprovada a falsidade da obra, tantas pessoas, boa parte delas com amplo acesso às evidências, seguiram (e seguem) acreditando em Os Protocolos dos Sábios de Sião?

Na atualidade, velhas e novas teorias conspiratórias ameaçam valores elementares da vida em sociedade e põem em risco nosso futuro. E, tal como ocorreu com os Protocolos, a abundância de comprovações de que estão errados não parece demover aqueles que creem, por exemplo, que o Holocausto é uma mentira inventada em nome de interesses ocultos, que as vacinas contra a Covid-19 carregam um microchip para controlar as pessoas, que o aquecimento global causado por ação humana não passa de um complô contra a economia ou que uma conspiração “globalista” comandada por George Soros (não por acaso judeu) une financistas do capitalismo global e partidos de esquerda para destruir a “civilização ocidental”. Pelo contrário, cada evidência de que estão errados serve, para os propagadores de teorias conspiratórias, como uma demonstração do poder das forças malignas que estão a enfrentar, as quais controlariam mídias, universidades e governos para não permitir que o terrível complô seja revelado.

O trabalho realizado por Philip Graves há cem anos, assim como o de jornalistas e especialistas hoje em dia, de apresentar os fatos que desmascaram a mentira, é heroico e de suma importância. Mas é insuficiente. É preciso compreender o poder de atração de teorias conspiratórias para combatê-las.

Origem e difusão da mentira

A origem dos Protocolos está nos últimos anos do século XIX e a obra, muito provavelmente, foi encomendada pela Okhrana, a polícia secreta da Rússia czarista. O objetivo era desviar a atenção do autoritário e retrógrado regime dos czares para outro alvo – um que historicamente já enfrentava discriminação -, os judeus, e associar as pressões por mudanças no regime a uma maligna conjuração.

Mesmo depois de denunciada a fraude, o livro continuou sendo publicado e seus delírios chegaram a milhões de pessoas. O caso mais evidente foi o regime nazista na Alemanha, que o publicou e divulgou amplamente – e é provável que muitos líderes nazistas não o usassem só como arma retórica, mas de fato acreditassem na existência de uma conspiração judaica (e sobretudo judaico-bolchevique) para dominar o mundo.

Na década de 1930, os Protocolos também chegariam ao Brasil, traduzidos por Gustavo Barroso, membro da Ação Integralista Brasileira (e também da Academia Brasileira de Letras e diretor do Museu Histórico Nacional). Ainda hoje, não é difícil encontrar edições do livro – algumas delas com acréscimos, como os que vinculam os ataques terroristas de 11 de setembro a essa conspiração judaica – à venda ou para download, apesar de ilegal no Brasil.

A crença na mentira

O que fez tantas pessoas acreditarem que Os Protocolos dos Sábios de Sião trazia informações verdadeiras? O medo e angústia perante a Modernidade na passagem entre os séculos XIX e XX – que encontra paralelo nas dificuldades contemporâneas no mundo globalizado – são fatores importantes de atração às teorias conspiratórias. Afinal, tais teorias, mesmo que frutos de delírios paranoicos, são de fácil entendimento (diferentemente das próprias transformações sociais) e apontam para uma explicação monocausal dos fenômenos. Assim, a imprevisibilidade histórica envolvida nos mais diversos problemas sociais é substituída por uma única fonte: um interesse oculto, maligno e poderoso.

Uma vez estabelecida a demanda por uma teoria conspiratória, é preciso encontrar um alvo conveniente. E, ao menos naquela época, os judeus se encaixavam nesse papel. Ao histórico preconceito que, desde a Idade Média, acusava os judeus de assassinos de Cristo a causadores da peste bubônica, se somavam fatores modernos. A persistência de sua existência como povo, cultura e religião, mesmo espalhados por vastos territórios, fazia com que, aos olhos de muitos, fossem vistos como “estranhos” e “secretos” – característica, aliás, compartilhada com outros dois grupos historicamente acusados de criarem complôs: maçons e jesuítas.

Ao mesmo tempo em que mantinham uma “inexplicável” coesão, judeus também se mostravam extremamente diversos. Porém, para os que acreditam em teorias conspiratórias, isso só demonstra sua periculosidade. Desproporcionalmente presentes tanto no mundo dos negócios como em movimentos revolucionários, o judeu cosmopolita da virada do século XIX para XX era o representante perfeito da Modernidade contra a qual essas teorias se voltavam. Ao longo do século XIX, os judeus haviam gradualmente obtido direitos de cidadãos de seus países (um dos últimos que resistia era, justamente, a Rússia), de modo que a chamada emancipação dos judeus era vista como um símbolo da modernização de um país. Assim, não parecia difícil associar judeus ao que viam como desagregação das estruturas tradicionais da sociedade – de forma semelhante a que hoje muitos acusam imigrantes, LGBTs ou feministas.

Esse pânico diante das transformações na sociedade pode atingir diferentes setores sociais por motivos diversos. Desta forma, embora geralmente as teorias conspiratórias acabem servindo mais aos interesses de manutenção do status quo ou mesmo às ideias mais reacionárias – como foi o caso do uso dos Protocolos pelos czares russos – é possível encontrar, entre seus adeptos, pessoas vinculadas às mais diversas correntes políticas, muitas vezes antagônicas entre si.

Esse poder de atração, por mais que às vezes soe patético e cômico, não deve ser menosprezado. Uma vez estabelecida a fonte de todo o mal em um complô maléfico, emerge a necessidade das forças do bem, que quanto mais terrível for o mal, mais duras terão que ser. Surge a justificativa perfeita para aparatos repressivos e a violência extrema, que tiveram como expoente máximo, mas não único, a Alemanha nazista, para a qual nenhuma medida era exagerada para conter a conspiração judaica.

Nesta semana, lembramos de um acontecimento fundamental para o combate às teorias conspiratórias em geral e Os Protocolos dos Sábios de Sião especificamente: sua exposição como fraude por meio de uma imprensa assertiva que não confundiu o dever de escutar pontos de vista diferentes com dar voz a mentiras. É um primeiro e fundamental passo, mas o combate a teorias conspiratórias passa por traçar sua trajetória: quem a criou, com que interesses, baseado em que visão de mundo. Para desbaratar as teorias da conspiração é preciso não só desconstruir suas mentiras, mas os pressupostos preconceituosos e autoritários que as sustentam.

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