O legado de Richard Wagner e a ópera a serviço do nazismo

Contemplar ou estimar a obra de um dos maiores compositores clássicos de todos os tempos não é um delito, mas o contexto é uma ferramenta importante para refletirmos sobre seus significados

Um concerto comemorativo dos 80 anos da Força Aérea Brasileira (FAB), realizado no último dia 30 de novembro, causou controvérsia ao apresentar uma ópera de Richard Wagner. A polêmica foi ressaltada pela presença do presidente da República, que, da plateia, acompanhou a exibição da ópera Die Meistersinger von Nürnberg [Os Mestres Cantores de Nuremberg], a única obra cômica do compositor alemão, composta em 1867. Mas qual a razão da polêmica e como ela se relaciona com o Holocausto? O que essa ópera possui de especial em relação ao nazismo?

Wilhelm Richard Wagner nasceu na pequena Leipzig, no futuro território unificado da Alemanha. Maestro, poeta, teórico musical e ensaísta, Wagner compunha óperas baseadas em contos de uma Alemanha mítica e predestinada à glória. Elas pressupunham um povo alemão forte e unificado, o que pode ser observado em suas constantes menções a um “Império Alemão”. Elas insuflaram o espírito alemão de tal forma que colaboraram na geração de uma forte onda nacionalista. Faleceu em 1883, exatos 50 anos antes da ascensão do regime nazista.

Notório antissemita, Wagner publicou o panfleto “O Judaísmo na Música”, no qual desprezava a produção de compositores judeus como Felix Mendelssohn e Giacomo Meyerbeer, além de defender um combate à influência judaica na vida musical. No livreto, Wagner negava ao judeu toda possibilidade de criação artística, inventiva própria e espiritualidade. Para ele, o judeu, além de “surpreender primeiro por seu aspecto exterior, sempre ‘desagradável’”, não possuiria “faculdade de expressar-se… (com) originalidade e personalidade”.

Adolf Hitler adotou o já falecido Wagner como seu compositor predileto quando assistiu a ópera Rienzi, no Império Austro-Húngaro, em 1906. Aproximou-se de seus descendentes, tornando-se amigo íntimo de Winifred Wagner, diretora, à época, do festival de Bayreuth (criado para cultuar a personalidade de Richard Wagner) e casada com Siegfried Wagner, filho do compositor.

A nazificação da figura de Wagner

Em 13 de fevereiro de 1933, data do cinquentenário da morte de Wagner e dias após a indicação de Hitler como chanceler, foi realizada uma grande cerimônia em Leipzig com a presença do alto escalão nazista. No mês seguinte, a obra Os Mestres Cantores de Nuremberg, que trata de temas populares do século XV, foi encenada na Ópera Estatal de Berlim para marcar simbolicamente a fundação do Terceiro Reich. Considerada a “mais germânica de todas as óperas”, ela retornaria triunfante à cidade-título em 1935, na forma do prelúdio de seu terceiro ato, quando a famosa cineasta Leni Riefenstahl a utilizou no filme O triunfo da vontade. A peça de propaganda, como sabemos, glorifica e mistifica Hitler e o regime nazista, sendo um dentre vários exemplos da utilização da ópera a serviço do nazismo.

Isto significa que Wagner era nazista? Absolutamente, já que ele viveu ainda no século XIX. No entanto, seria correto afirmar que Wagner foi “nazificado”, ao mesmo tempo que o nazismo foi “wagnerizado”? Sem dúvidas. Bayreuth foi transformada por Hitler na grande joia cultural da nova Alemanha, enquanto Nuremberg, importante cidade desde o Sacro Império Romano-Germânico, foi escolhida como local das grandes convenções e comícios nazistas.

Os judeus não aparecem nas obras musicais de Wagner. Mesmo assim, por causa da conexão entre sua figura e a propaganda nazista, o Estado de Israel proibiu que fossem tocadas suas músicas em rádios e orquestras até 1986 e não teve suas óperas executadas até o ano de 2001. O tabu caiu quando o maestro judeu nascido na Argentina Daniel Barenboim resolveu incluir Wagner num concerto do Festival de Jerusalém. Houve protestos de sobreviventes do Holocausto. Hoje, mesmo de domínio público, evocá-lo em Israel ainda causa grande mal-estar.

Não existe crime, mas existe contexto

Não existe crime em apreciar a obra de Richard Wagner, um gênio da música reconhecido por seu talento ímpar, mas ao mesmo tempo um antissemita e nacionalista que se tornou admirado pelo Terceiro Reich. Como destacado pelo renomado professor Edward Said, “uma mente madura deve ser capaz de admitir a coexistência de dois fatos contraditórios: que Wagner foi um grande artista e, segundo, que Wagner foi um ser humano abominável”.

Contemplar ou estimar a obra de um dos maiores compositores clássicos de todos os tempos não é um delito, mas o contexto é uma ferramenta importante para refletirmos sobre seus significados. Quem não se lembra do ex-secretário nacional da Cultura Roberto Alvim, exonerado após uma encenação grotesca de Joseph Goebbels, ministro nazista da Propaganda? No caso, não havia coincidência na escolha da ópera Lohengrin, de Richard Wagner, para anunciar seus planos de “avançar na construção de uma nova e pujante civilização brasileira” – e muito menos no fato de, na famosa autobiografia Mein Kampf, o ditador nazista ter descrito como sua ida à mesma ópera wagneriana, aos 12 anos de idade, teria mudado sua vida.

O contexto faz a diferença.

Em 2013, nas comemorações de dois séculos do nascimento do compositor, gerou grande repercussão a encenação de uma de suas óperas na Alemanha que, originalmente passada na Idade Média e centrada em mitos germânicos, foi transposta para o século XX e mostrava judeus sendo assassinados. A plateia se revoltou, pessoas precisaram ser medicadas e a embaixada de Israel se manifestou.

Novamente, o contexto faz a diferença.

E no caso do evento da FAB? Há controvérsias, mas também há contexto. Por um lado, existem os que acham imprescindível separar a obra do compositor tanto de suas opiniões racistas quanto da apropriação que o nazismo fez dela. Este é a opinião do diretor cênico André Heller-Lopes, primeiro brasileiro a encenar o ciclo de “O Anel dos Nibelungos” no país. Por outro, há os que afirmam que “tocar Wagner é uma comunicação com os supremacistas brancos”. Caso do compositor e musicólogo Jean Goldenbaum, doutor pela Universidade de Augsburg e membro do Observatório Judaico dos Direitos Humanos. Esse ponto de vista já havia sido apontado pelo renomado escritor Thomas Mann, ainda em 1949, ao escrever: “com certeza, há muito ‘Hitler’ em Wagner.”

Fato é que a presença da obra de Richard Wagner no concerto de estreia da Orquestra Sinfônica da Força Aérea Brasileira não geraria repercussão caso o chefe do Executivo brasileiro, em compromisso fora da agenda oficial, não estivesse na plateia do teatro do Batalhão de Guarda Presidencial do Exército. Grandes jornais e portais de notícia não teriam veiculado, em letras garrafais, sobre supostas ligações ideológicas entre Wagner, Hitler e o presidente do Brasil. E aqui, novamente existe o contexto. Quem teria criado o programa musical da noite? Ele teria sido alterado? Haveria uma intencionalidade em transmitir uma mensagem ou provocar a própria sociedade brasileira a partir do legado de Wagner? Apenas os responsáveis poderiam responder esta e outras perguntas.

Wagner nunca será “cancelado” – ele será sempre parte fundamental da história musical, além de crucial para a formação de novos músicos. Porém, mais uma vez, o contexto e o histórico fazem a diferença. Convenhamos, são vários exemplos de analogias e comentários elogiosos ao nazismo por parte de políticos e governantes nos últimos anos – alguns deles gravíssimos. Por isso, no caso específico do concerto, a experiência é inconveniente e nosso incômodo é inegável.

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