O Estado de Israel não é um epílogo do Holocausto

Essa falsa lógica entre “Holocausto e Israel” é chamada por Yehuda Bauer de “lenda judaica”, criada como fator de vitimização e de legitimação do Estado de Israel perante o mundo. Em outras palavras, o Holocausto seria usado como explicação e justificativa da existência de um Estado judeu

Comecemos pela conclusão: o Holocausto não impulsionou a criação, em 1948, do Estado de Israel. O país não foi erguido como reparação ao genocídio de seis milhões de judeus, seja por mea culpa ou por pressão internacional. A lógica é inversa: o Holocausto provocou seu atraso e atrapalhou o processo político e migratório originado pelo Sionismo, ainda no século XIX.

Boa parte do que será esmiuçado nesse artigo já foi dito e escrito pelo historiador israelense Yehuda Bauer – ainda saudável e produtivo, mesmo com 96 anos. Yehuda Bauer é talvez o maior nome ligado às pesquisas sobre memória e educação do Holocausto, padrinho intelectual da Declaração de Estocolmo e da IHRA, a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto – que, em 2021, recebeu o Brasil como país-observador, apoiado pelo Museu do Holocausto de Curitiba. Num de seus livros – Rethinking the Holocaust – Bauer formulou e respondeu perguntas, dentre elas “qual teria sido o impacto do Holocausto, se é que houve, no estabelecimento de Israel” e se “seria este país um epílogo do Holocausto”.

Equívocos e senso comum

A resposta mais comum, inclusive de uma parcela significativa de lideranças judaicas, é que sim: Israel como Estado seria resultado do Holocausto e que sem a tragédia não haveria Israel, ou seria muito mais difícil tê-lo. Consequentemente, os eventos futuros estariam vinculados historicamente ao genocídio: não apenas num viés de causa e de consequência, mas de responsabilidade. A conexão foi formalmente estabelecida na Declaração de Independência de Israel, lida por David Ben Gurion, em Tel Aviv, em 14 de maio de 1948: “O Holocausto nazista, que engoliu milhões de judeus na Europa, provou novamente a urgência de restabelecer o Estado judeu”, disse em alto e bom som.

Outro exemplo dessa falsa relação direta está na “Lei do Retorno”, de 1950. A lei foi adotada como forma de garantir que Israel se concretizasse como porto seguro para os judeus do mundo – que qualquer judeu pudesse ser ajudado a se tornar um cidadão israelense. No entanto, a pergunta “quem é judeu?” demanda respostas complexas – e a solução não foi uma perspectiva religiosa, sendo criticada por setores da sociedade israelense por supostamente seguir a lógica nazista para respondê-la. A justificativa da lei seria “se a pessoa fosse ‘suficientemente judia’ para ser mandada a uma câmara de gás, então deveria ser ‘suficientemente judia’ para ser acolhida por Israel”. Tal raciocínio polêmico foi debatido e o argumento contrário se embasava no questionamento de que seria então Hitler o responsável por definir quem seria ou não judeu para o Estado de Israel, e não o próprio judaísmo.

Em 2017, o maestro e pianista Daniel Barenboim escreveu um artigo no jornal israelense Haaretz demonstrando sua solidariedade ao povo palestino e afirmando que, se não fosse o Holocausto, não haveria ocorrido a Nakba – palavra árabe que significa “catástrofe” e é usada para se referir ao êxodo palestino de 1948. Alguns dias depois, o próprio Bauer o respondeu em um artigo publicado no mesmo jornal. “O senhor volta ao argumento, comum até mesmo entre judeus, que o Estado de Israel é resultado do Holocausto – mas não o é”, destacou Bauer.

Argumento antissemita

Não apenas judeus se utilizam desse pressuposto, mas também os antissemitas. Trata-se de uma negação do Holocausto disfarçada de antissionismo e, nesse caso, também de antissemitismo. Em 2006, incentivado pelo então presidente Mahmoud Ahmadinejad, o Irã realizou uma conferência que colocou em dúvida a magnitude do Holocausto e ratificou a teoria do seu uso para justificar a criação do Estado de Israel, não reconhecido pelo país persa. Notórios negadores do Holocausto e até ex-membros do Ku Klux Klan participaram do evento, que incluiu grupos judaicos ultraortodoxos antissionistas que rejeitam a existência de Israel, caso dos Naturei Karta.

Esse é, portanto, um argumento para deslegitimar o Estado de Israel – como se o país tivesse sido criado por causa do Holocausto, e não apesar dele. A ideia é uma arma aos antissemitas porque se o genocídio “não existiu”, então Israel também não teria razão ou direito de existir. 

Lenda judaica

Cena do filme “A Lista de Schindler”, 1993. Foto: divulgação.

Essa falsa lógica entre “Holocausto e Israel” é chamada por Yehuda Bauer de “lenda judaica”, criada como fator de vitimização e de legitimação do Estado de Israel perante o mundo. Em outras palavras, o Holocausto seria usado como explicação e justificativa da necessidade da existência de um Estado judeu.

A lenda foi perpetuada e reforçada pelo establishment sionista e pela indústria cultural, caso de “A Lista de Schindler”. A cena final do filme mostra sobreviventes caminhando a esma até que encontram um soldado: “Para onde a gente deve ir agora?” A resposta do soldado: “Não vá para o leste, isso com certeza. Eles odeiam vocês lá. Eu também não iria para oeste, se fosse vocês.” Então ele aponta e questiona: “não tem uma cidade naquela direção?” Começa a tocar a famosa música judaica Yerushalaim shel Zahav, Jerusalém de ouro, como se fosse o único destino possível. Nesse momento, a tela passa do preto e branco ao colorido, demonstrando o simbolismo da cena.

Entendamos, finalmente, por que essa conexão direta do Holocausto como causa da criação de Israel é equivocada.

A primeira razão é puramente histórica. A perspectiva de que Israel é uma forma de reparação ignora as mais de seis décadas anteriores de consolidação do Movimento Sionista. Ignora as imigrações, o estabelecimento da Organização Sionista Mundial e a criação dos kibutzim. Ignora a Declaração Balfour de 1917 (que teve efeito psicológico nas pretensões sionistas), o Mandato Britânico e o crescimento exponencial da população judaica na região. Ignora as restrições inglesas ao número de judeus que podiam emigrar e os esforços conjuntos para resolver o problema, caso da Comissão Peel.

Junto a isso, ignora o fato do Movimento Sionista ter construído a infraestrutura de uma entidade política judaica na Terra de Israel e que buscou propiciar a imigração de multidões, especialmente da Europa Oriental, enquanto o resto do mundo estava fechado a eles. A expectativa, inclusive, era de que a solução política pudesse acontecer ainda nos anos 1930, mas veio a guerra. Significa que, antes do extermínio, a questão “Estado de Israel” já estava politicamente em pauta.

A solução sionista nunca foi a preferida dos judeus europeus, mas com o passar das primeiras décadas do século, ela ganhava cada vez mais adeptos. Os sionistas acreditavam que uma porcentagem significativa dos mais de três milhões de judeus da Polônia almejasse emigrar. No entanto, veio o Holocausto, um golpe para o anseio e suas pretensões, já que eliminou a reserva humana em que se baseava o Movimento Sionista.

Isso explica como é incorreta a ideia de “mais Holocausto, mais Israel”. Contrariamente, segundo Bauer, a fórmula histórica é “mais Holocausto, menos Israel; menos Holocausto, mais Israel”. O genocídio não é causa, pelo contrário – ele atrasou a solução do problema porque diminuiu o contingente populacional potencial que o Sionismo pretendia utilizar para resolver a questão.

É evidente que a presença de milhares de sobreviventes nos campos de pessoas deslocadas na Alemanha, Áustria e Itália gerou uma pressão para que se encontrasse uma solução. Como resultado da tragédia, a resposta sionista parecia, aos seus olhos, a única opção. Mas a pressão não era do “Holocausto”, e sim dos que sobreviveram, ou seja, se houvesse sobrevivido menos judeus, a pressão seria menor.

Outro argumento parte da premissa falsa de que existia um sentimento de culpa do “mundo”, o que é parte da lenda. Como se os países realmente se lamentassem. Aqui, analisamos fontes históricas. O Reino Unido se opôs até o final à Partilha da Palestina, apesar de se abster da votação. Os Estados Unidos propuseram, ainda em março de 1948, não dividir a terra, ou seja, suspender a votação histórica e estabelecer um protetorado anglo-americano que mantivesse a política migratória dos anos 1930. Melhor dizendo, o Holocausto e a sina dos sobreviventes não tiveram relevância alguma nos posicionamentos de ambos os países.

Discurso de Ben Gurion, Declaração de Independência de Israel, 14 de maio de 1948. Foto: reprodução.

A única potência que mudou sua atitude foi a União Soviética. Seu representante na ONU, Andrei Gromyko, fez um discurso em apoio à criação de Israel e lembrou, numa frase isolada, o sofrimento dos judeus. Ele não falou especificamente sobre Holocausto ou reparação, mas a frase sozinha já é mais significativa do que Reino Unido e EUA haviam feito. Não por bondade, piedade, simpatia ou culpa. A mudança de posição da URSS tinha o objetivo geopolítico de repelir a Grã-Bretanha do Oriente Médio. Assim como os ocidentais, os soviéticos não davam importância ao destino dos judeus.

Na ONU, apenas os representantes da Guatemala e da Nicarágua se referiram, em certa medida, ao que hoje chamamos de Holocausto. Todos os demais viram na decisão sobre o futuro da Terra de Israel um assunto político, com questões morais secundárias. Cai por terra a noção de que existia um clamor baseado em condolência por acolher os sobreviventes – até porque as potências ainda mantinham suas fronteiras fechadas ou sob normas rígidas.

Há quem defenda que o tema da compaixão existiu na relação entre Holocausto e Israel – não dos países ricos, mas fruto de uma pressão interna. Como se o Movimento Sionista tivesse usado o Holocausto como fator de pressão, sendo os próprios sionistas os responsáveis por criar essa conexão. É, no entanto, incoerente analisar o Holocausto como uma arma moral nas mãos do Sionismo para obter o controle da Palestina britânica ou reduzir a força política dos árabes.

Novamente parafraseando Bauer, “pensar Israel como um produto do Holocausto é um erro absoluto”. Este é um pensamento que não existia na época e que surgiu a posteriori. As consequências dessa narrativa prejudicam tanto a memória do genocídio quanto do Estado de Israel.

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