Escrever para nós uma história sem medo

Existências LGBTQIA+, Holocausto e narrativas (im)possíveis

“(…) e quando falamos nós temos medo

de nossas palavras não serem ouvidas

nem bem-vindas

mas quando estamos em silêncio

ainda estamos com medo.

Então é melhor falar

lembrando

que nunca estivemos destinadas a sobreviver”

Audre Lorde, Uma Litania pela Sobrevivência.

Uma vasta bibliografia, feita de pesquisas, relatos, experiências e estudos – minuciosos e interdisciplinares – se dedica a pensar gênero e sexualidade de humanos e não humanos, em distintos tempos e culturas. A esta altura, no entanto, nos parece certo de que a maior parte deles se dá via produção ininterrupta da diferença ou via produção compulsória de assimilação – isto é, perspectivas que apostam em uma classificação, categorização e diferenciação entre existências (que acaba por engendrar desumanizações no conceito de “humanidade”) ou em uma noção pacificadora de “igualdade”, que não considera geopolíticas, processos de colonização, aspectos culturais localizados e sociabilidades específicas.

As histórias das existências LGBTQIA+ atravessam as histórias de tudo o que há: as narrativas de origem, as explicações do mundo, a criação de territórios, nações, colônias, cidades, países, insurgências, agrupamentos, instituições, saberes, sonhos – e por aí vai. A nomeação, o enquadramento, a patologização, a reprovação ou o aceite de vidas que escapam, sempre se deu em disputa. O que sabemos, todavia, é que nisso, que se convencionou chamar Ocidente, nunca tivemos algo que se assemelhasse a uma dignidade irrestrita – e logo percebemos, então, que são pouquíssimos os que a acessam, uma vez que, culturalmente, “o outro” sempre foi associado ao esquecimento, numa supremacia do ser que justificou genocídios, como o Holocausto, e segue justificando a manutenção de desigualdades e de mortes por toda parte.

Diversos grupos ditos minoritários, histórica e socialmente, tiveram seus corpos, subjetividades e práticas teorizadas a partir de uma distância daquilo que, contextualmente, era considerado “normal”. Muito tarde a “outridão” criou possibilidades para que a palavra fosse tomada e que a espacialidade – centro e margem – fosse articulada de dentro, visando uma criação que levasse em conta os próprios desejos de quem até então não falava por si – ou, antes, tinha a fala interrompida. Levou muito tempo para que a inversão sujeito/objeto acontecesse – ela está acontecendo agora, enquanto escrevo este texto que é, em si, uma tentativa emancipatória.

A linguagem, via captura – em todos os sentidos: dos mais aos menos metafóricos –, frequentemente se deu em hierarquização, o que significa dizer que os problemas e questões ditos nossos eram a nós atribuídos, e isso, sem dúvida, é muito diferente. Foi-nos recusado esse processo de compreensão: se o léxico e a epistemologia com a qual queríamos existir era mesmo esse que nos apresentavam. De algum modo, os nomes, seus limites e possibilidades, com os quais operamos, não foram por nós decididos – mesmo este “nós” que agora clamo, não está dado, de todo, e é sempre transitório.

Os estudos do Holocausto, irmanados a muitos estudos interseccionais, nos revelam como os ódios – o teor “insuportável” que determinados grupos parecem criar em outros – tem similaridades. Sabemos como a violência pode ser extrema – simbólica, física, política, estética, ética. Aprendemos como o trauma, as mentiras tornadas verdades, as ficções criminosas de líderes genocidas, o apoio acrítico das massas, as perversões científicas, geram fenômenos da ordem do impossível, que se dão bem aqui: entre nós.

A Shoá, enquanto questão paradigmática, cria chamados incontornáveis dos quais a noção de “memória” parece crucial. As sobreviventes e os sobreviventes se tornam testemunhas do fim do mundo, reivindicações vivas. É como se seus atos fossem uma lembrança carnal de que nem todas as vidas estão garantidas, de que a distribuição dos recursos de vida pode ser profundamente desigual. Da “banalização do mal” ao “trauma e testemunho”, temos tentado criar sentidos para existências atravessadas e marcadas pelo extermínio, pelo genocídio, pelo constante risco de desaparição.

Parece existir um medo que nunca cessa, um certo tipo de temor que tangencia todas as tentativas de romper com as lógicas do apagamento. O estado de terror ao qual existências LGBTQIA+ estão expostas – um sem-fim de imagens de morte, sequencialmente apresentadas e reapresentadas –, produzem fenômenos da ordem do assombro. E é exatamente aí que parece residir a urgência da criação de outras narrativas – histórias, conceitos, projeções que nos tirem do interior das ficções de aniquilamento e nos permitam integrar um sistema de visibilidade e dizibilidade que leve em consideração nossos desejos incapturados pela destruição. Desfazer o medo, abandoná-lo – ainda que só por algum tempo. Passar da denúncia ao anúncio. Tentar enganar a tradição do silêncio.

Pensando em algumas destas questões – das quais “narrativas de vida”, “memória” e “formulações coletivas” são centrais –  criamos, no Museu do Holocausto de Curitiba, uma programação para o mês de junho, que reivindica complexidade e pluralidade para as existências LGBTQIA+. Nosso evento online, “ALÉM DO SILÊNCIO: existências LGBTQIA+, memórias e narrativas de vida”,se dá em dois eixos: Encontros e Formação. As aulas se concentram em temas sobre gênero e sexualidade, tendo o Holocausto como marco histórico e temporal. Já os encontros, reúnem artistas, pesquisadores e ativistas LGBTQIA+ para discussões envolvendo formulações coletivas sobre LGBTQIAfobia e resistência hoje. Confira a programação completa e detalhada abaixo:

ALÉM DO SILÊNCIO: existências LGBTQIA+, memória e narrativas de vida

Encontros acessíveis em Libras

– Museus no século XXI: diálogo, resistência e construção de memórias

Ao vivo em www.youtube.com/MuseuDoHolocausto

Evento de abertura – Dia 2 de junho, às 19h

Com Franco Reinaudo, coordenador do Museu da Diversidade Sexual da Secretaria de Estado da Cultura, e Carlos Reiss, coordenador-Geral do Museu do Holocausto de Curitiba.

Aulas

Ao vivo em www.facebook.com/MuseuShoaCuritiba

– Existências LGBTQIA+ no contexto pré-nazista: narrativas, linguagens, personagens, organizações e memórias

Dia 7 de junho, às 19h, com Marcio Albino

Inscrições: https://www.sympla.com.br/aula-virtual—existencias-lgbtqia-no-contexto-pre-nazista__1237322

– Triângulo Rosa: uma abordagem do nazismo a partir de uma perspectiva de gênero – Em espanhol, com tradução simultânea para o português

Dia 14 de junho, às 19h, com Claudio Román e Joel Kaplan

Inscrições: https://www.sympla.com.br/aula-virtual—triangulo-rosa-uma-abordagem-do-nazismo-a-partir-de-uma-perspectiva-de-genero__1237374

– Holocausto e Gênero numa perspectiva literária

Dia 21 de junho, às 19h, com Rebeca Serrano

Inscrições: https://www.sympla.com.br/aula-virtual—holocausto-e-genero-numa-perspectiva-literaria__1237387

– As lacunas deixadas pelo silêncio: vozes lésbicas no Terceiro Reich

Dia 28 de junho, às 19h, com Sofia Wirthmann

Inscrições: https://www.sympla.com.br/aula-virtual—as-lacunas-deixadas-pelo-silencio-vozes-lesbicas-no-terceiro-reich__1237465

Conversas

Ao vivo em www.youtube.com/MuseuDoHolocausto

– Escrever, compor: formular juntes

Dia 03 de junho, às 19h

Com Anderson Feliciano, Beatriz RBG, Mel Bevacqua, Natalia Borges Polesso

– Acolher: gesto coletivo

Dia 10 de junho, às 19h

Com André Liberman, Nahomi Helena Santana, Lucas Siqueira e Rafaelly Wiest

– Proposições desde o Sul do Mundo

Dia 17 de junho, às 19h, com Geni Núnes, Helena Vieira, Jaqueline Gomes de Jesus, Lígia Ziggiotti e Rafael Kirchhoff

– Nada sobre nós sem nós

Dia 24 de junho, às 19h, com Jonas Marssaro, Victor Di Marco e Pedro Henrique Franca 


Para ir além

Janelas verdes

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