Como um projeto de lei pode desvirtuar a memória do Holocausto

Embora reconheçamos o esforço e a importância da criminalização da negação do Holocausto, existe uma convicção de que criminalizar a “universalização” deste genocídio significa retirar toda a relevância contemporânea de suas lições

Comecemos por questões mais genéricas. Como garantir que a construção da memória de qualquer evento histórico, principalmente os traumáticos e recheados de lições, ocorra sem percalços? De que forma podemos evitar que a deturpação de um legado se transforme em narrativa hegemônica para as próximas gerações? A principal resposta para ambas as perguntas, sem dúvida, é a educação. A transmissão de valores universais aos jovens a partir da tragédia do Holocausto é uma vacina contra a proliferação dos discursos de ódio e os riscos de ascensão de regimes racistas, xenófobos, totalitários, negacionistas e que desprezam a magnitude dos direitos humanos.

Apesar de solução definitiva (a longo prazo), a educação não é a única forma de lidar com narrativas que corrompem a memória do Holocausto. As leis e a Justiça são ferramentas fundamentais no Estado Democrático de Direito para garantir a seriedade e a responsabilidade com que os legados que construímos a partir desta tragédia sejam irradiados, geração após geração, sem distorções históricas que comprometam nossa vida em sociedade. No caso do Holocausto, falamos sobre a criminalização da negação do genocídio, legislação consumada em diversas democracias no mundo, incluindo na Alemanha. O país europeu não aceita a liberdade absoluta de manifestação e de opinião acerca do Holocausto, resguardando juridicamente e punindo criminalmente qualquer relativização ou negação do extermínio perpetrado por nazistas e seus colaboradores no âmbito da Segunda Guerra Mundial.

Há quem entenda que o Direito Penal brasileiro não deveria punir a negação de fatos históricos se não houver, explicitamente, manifestações racistas ou incitação ao ódio – caso da ampliação do alcance da lei de racismo para proteção de vítimas de ataques LGBTIfóbicos. No entanto, tenho nas últimas semanas conversado com especialistas brasileiros, unânimes em argumentar sobre a importância de que a negação do Holocausto seja tipificada também no Brasil. As razões são de todo tipo, que envolvem desde questões constitucionais, éticas, científicas e educativas. Mas esse consenso vai até a página 2.

No prefácio do recente livro Criminalização da Negação do Holocausto no Direito Penal Brasileiro (Editora Thoth), da advogada Milena Gordon Baker, a ex-ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie defende a urgência do que chama de “balizamento do mínimo ético a ser exigível” e destaca que “cabe ao legislador brasileiro concretizar essa necessidade de estabelecimento de regra tipificadora e sanção correspondente”.

Pois bem. Cabe ao legislador.

Esta longa introdução serve para comentar a iniciativa de um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados desde outubro de 2020, que altera a Lei federal n.º 7.716/89, a qual define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. O texto tem sido divulgado como uma proposta que “criminaliza a negação do Holocausto judeu”. Claro que gerou interesse em todos os profissionais e instituições que lidam com a memória do genocídio, incluindo o Museu do Holocausto de Curitiba, que foi buscar a redação original, de apenas oito páginas. Nesse momento, percebemos como narrativas conflitantes interferem na construção de uma memória plural, justa e consciente do Holocausto.

Campo de concentração de Auschwitz, na Polônia. Crédito da foto: reprodução.

O Projeto de Lei 4974/20, do deputado Roberto de Lucena (Pode-SP), pretende, transcrevendo do original, “incluir entre os crimes que especifica todos os elementos estéticos alusivos ao nazi-fascismo, bem como os atos de promoção, negação, depreciação, deflexão, inversão, universalização e trivialização do Holocausto Judeu e, ainda, em relação a ele, os atos de abuso, obliteração ou silenciamento da memória e as alusões de equivalência antes da guerra e em tempo de guerra e as alusões de equivalência pós-guerra.” Analisemos como esta proposição caminha no sentido contrário acerca da educação sobre o Holocausto no século XXI.

Embora reconheçamos o esforço e a importância da criminalização da negação do Holocausto, existe uma convicção de que criminalizar a “universalização” deste genocídio significa retirar toda a relevância contemporânea de suas lições. Quando falamos “Nunca Mais”, lema mundial de lembrança do Holocausto, estamos renovando um pacto coletivo universal de que identificaremos os sinais e lutaremos contra toda e qualquer forma de ódio, intolerância e discriminação, contra qualquer grupo e em qualquer parte do mundo. Quando falamos “Nunca Mais”, estamos nos comprometendo a tornar a memória o que toda memória deve ser: útil. Estamos no comprometendo a, sim, manusear a memória do Holocausto e utilizá-la como agente transformador – e esse é um dos pressupostos do universalismo do Holocausto. Sem a universalização, corre-se o risco de “sacralizar” o Holocausto, ou seja, de torna-lo inútil do ponto de vista de construção da memória.

Não há possibilidade de construir e dar sentido à memória sem o que o autor do projeto chama de “alusões de equivalência antes da guerra e em tempo de guerra e as alusões de equivalência pós-guerra”, que ele busca criminalizar. A perspectiva é absolutamente equivocada. A História é comparativa por definição e, sem alusões responsáveis, a memória se torna inútil. O Museu, como instituição social que participa dos debates públicas e dialoga com a sociedade, tem consciência de que o Holocausto é uma ferramenta educativa poderosa para lutar contra ódios e preconceitos atuais. Temos um voz ativa e ações positivas em relação a este combate. É apenas dessa forma que o “Nunca Mais” vai fazer sentido.

A não ser que haja mudanças substanciais no texto, incluindo as inverdades descritas na justificativa (que incluem números inexatos e um conceito degenerado de “banalização do Holocausto”), mesmo reconhecendo a importância da luta contra os negacionismos, tal projeto precisa ser afrontado. Até porque, caso aprovado, instituições e profissionais que trabalham com a premissa da universalização do Holocausto terão seus ofícios cerceados. Sem contar a pena:  reclusão de dois a cinco anos e multa. Imaginam? Atentando contra a vulgarização, nunca foi tão importante falar, conectar, relacionar, explicar, aproximar e utilizar o Holocausto.

Para ir além

Sobre o projeto:

https://www.camara.leg.br/noticias/729427-projeto-criminaliza-a-negacao-do-holocausto-judeu/

A tramitação:

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2264517&fbclid=IwAR24CqpBZXnT-8cWubbLJqI0JQLsiy1T9b_A3g4z8T0RyBP7_OVfzmX7Aj0

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