A figura do pária a partir da lembrança da “Noite dos Cristais”

O genocídio não era um fato dado em 1938. O que havia eram mecanismos de discriminação, cujas permanências assombram as grandes massas de excluídos das sociedades ainda hoje

Em novembro, é lembrada a Kristallnacht [Noite dos Cristais], também conhecida como pogrom de novembro de 1938. O que um acontecimento de mais de 80 anos atrás tem a dizer sobre a atualidade? Muito.

Antes, o que foi a Kristallnacht? Na noite de 9 para 10 de novembro daquele ano, ocorreu o primeiro grande ato em massa de violência física do regime nazista contra a população judaica alemã. O evento ficou conhecido como Noite dos Cristais devido às vidraças estilhaçadas de milhares de lojas e sinagogas que foram vandalizadas, saqueadas e incendiadas. Além disso, ao menos 91 judeus foram assassinados e cerca de 30 mil enviados para campos de concentração. Era a primeira vez que um grande número de judeus era confinado em campos nazistas pelo fato de serem judeus.

Poucos dias antes, 17 mil judeus poloneses residentes na Alemanha haviam sido expulsos do país pelo governo nazista. Não sendo readmitidos na Polônia, a maioria permaneceu meses aguardando em uma “terra de ninguém” entre a Alemanha e a Polônia, sem ter para onde ir. Entre eles estava a família de Herschel Grynszpan, então vivendo em Paris, que se decidiu por um ato desesperado. Em 7 de novembro, ele entrou na embaixada alemã e atirou no diplomata Ernst vom Rath, que viria a óbito. Esse acontecimento serviu de pretexto para tropas de assalto nazistas, insuflando a população local, levarem a cabo a Noite dos Cristais por todo o Reich, que a essa altura incluía a Alemanha, a Áustria e partes da Tchecoslováquia.

Para muitos estudiosos, a Noite dos Cristais sinaliza a passagem da discriminação dos judeus pelo regime nazista para sua perseguição. Há quem inclusive estabeleça o 9 de novembro de 1938 como data de início da Shoá, ou Holocausto, o genocídio de cerca de 6 milhões de judeus na Europa.

A figura do pária

Façamos agora um salto de 80 anos no tempo. 18 de agosto de 2018, Pacaraima, fronteira entre Brasil e Venezuela. Após um assalto atribuído a venezuelanos, dezenas de brasileiros atacaram um acampamento de imigrantes. Agressões, expulsões e queima de pertences foram algumas das cenas de horror. Esse evento específico ganhou certa repercussão à época, mas, infelizmente, não se trata de um caso isolado. A situação, com gradações de escala, é corriqueira com imigrantes da Venezuela, Haiti, Síria e outros países.

Dois importantes paralelos surgem desse acontecimento.

O assalto em Roraima não tem nenhuma relação com o assassinato de vom Rath. No entanto, também em Pacaraima, após um fato isolado atribuído a um integrante de um grupo marginalizado, todos se tornaram alvo de ataques. Evidentemente, o assassinato de um oficial nazista e um assalto a um comerciante são atitudes distintas e em contextos totalmente diferentes. O paralelo não se dá na ação, mas na reação do grupo dominante.  

Tal como os judeus na Alemanha nazista, os venezuelanos em Roraima são vistos como párias – aquele que está dentro de uma sociedade, mas ao mesmo tempo é dela excluído. Segundo a socióloga Eleni Varikas, uma característica que acompanha as figurações deste sujeito na história é que os indivíduos assim classificados são vistos como exemplares de um grupo portador de uma essência. Isto permite que todos sejam responsabilizados pelas ações de uma única pessoa, uma vez que ela os representaria. Já os integrantes dos grupos dominantes teriam o privilégio de serem vistos como indivíduos. Assim, brasileiros não são como um todo responsabilizados por crimes cometidos por compatriotas – ao menos no Brasil. Já os venezuelanos, por serem encarados como párias, deveriam explicações por algo com que, como indivíduos, não têm relação – e por isso a represália é dada ao grupo e não aos supostos criminosos como indivíduos, tal como ocorreu com os judeus há 80 anos.  

O combate ao pária altera também a relação entre indivíduo e coletivo na sociedade. Em nome da suposta proteção, indivíduos são capazes de cometer ações que não fariam individualmente ou que não considerariam corretas. Esse conceito auxilia a explicar, sem justificar, a reação de boa parte da população que participou ou silenciou-se diante da Noite dos Cristais. Gryspan representava, para eles, todos os judeus que, como párias, deveriam ser combatidos pelos “arianos”, legitimando ações que em outras situações não aceitariam. Por isso, em algumas reportagens realizadas após os eventos em Pacaraima, alguns dos agressores entrevistados sequer pediam anonimato, ou seja, não se viam como culpados por algo.

Acampamento de imigrantes venezuelanos foi atacado em Roraima.

Imigração e refúgio

A segunda relação se dá em função de um aspecto que não pode ser ignorado: a imigração e o refúgio. Embora já houvesse, desde a ascensão do partido nazista ao poder na Alemanha, em 1933, um fluxo considerável de emigração de judeus alemães, foi a partir da violência presenciada na Noite dos Cristais que cada vez mais buscaram desesperadamente os consulados e embaixadas estrangeiras atrás de um visto que os permitisse deixar o país. Nem sempre, porém, obtiveram sucesso.

Poucos meses antes, representantes de 32 países estavam reunidos em Evian, na França, para discutir políticas sobre o crescente número de pedidos de refúgio por parte de judeus alemães e austríacos. Os resultados foram discursos condenando a Alemanha nazista e seu antissemitismo, mas, com raras exceções, se recusando a relaxar as restrições migratórias já em vigor. Isso incluía o Brasil, que, se não fechou completamente as portas à imigração judaica, criou empecilhos que praticamente a impossibilitavam àqueles que não tinham parentes aqui, recursos financeiros ou habilidades profissionais específicas.

A situação atual é tragicamente semelhante. Não pelos motivos que levam pessoas a migrar ou às situações que viviam em seu país de origem, mas pela postura dos demais de (não) acolhimento – ou quando acolhem, tornam-se palco de preconceito e explorações. Tal como em 1938, para muitos, a solução para evitar novas agressões como a de Pacaraima seria fechar a fronteira, construir muros e barreiras e condenar os imigrantes a situações terríveis – tal como em Evian, onde delegados argumentaram que proibir a entrada de judeus seria necessário para evitar o aumento do antissemitismo em seus países, culpabilizando as vítimas.  

Um adendo importante é que tanto no caso judaico no pré-Guerra quanto agora com os imigrantes, a xenofobia se mistura ao racismo. As restrições migratórias em diversos países, como no Brasil, não eram indiscriminadas, mas voltadas àqueles vistos como indesejáveis, não-brancos e não-assimiláveis (como judeus, chineses, árabes e africanos). Hoje, da mesma forma, a hospitalidade brasileira se manifesta quando os imigrantes são brancos e de países ricos, mas revela as permanências do racismo em relação a outras populações.

Não se trata de afirmar que Pacaraima presenciou uma nova Noite dos Cristais ou que a atual crise migratória seja uma repetição do Holocausto. Não existem comparações simples com a Shoá – não por uma suposta incomparabilidade, mas porque ela não se resume a um único acontecimento. Para evitar vulgarizações simplistas, é preciso evidenciar com quais elementos estamos fazendo paralelos. Holocausto não é sinônimo somente dos campos de extermínio, e uma análise complexa do processo que levou ao genocídio fornece um arcabouço valioso para analisar a sociedade contemporânea. Nesse caso, a Shoá permanece viva ao servir de alerta para o presente e o futuro.  

O genocídio não era um fato dado em 1938. O que havia eram mecanismos de discriminação, cujas permanências assombram as grandes massas de excluídos das sociedades ainda hoje. Os párias podem ser judeus na Alemanha nazista, venezuelanos imigrando para o Brasil, jovens negros e pobres cujas mortes são tratadas como efeitos colaterais, mulheres vítimas de feminicídios, pessoas LGBTIQIA+ agredidas como se não fossem humanos etc. Uma característica em comum nestes sujeitos é que são vistos primeiro como exemplares de uma categoria, e somente depois como indivíduos.

Em 1945, o nazismo foi derrotado. Mas, infelizmente, os mecanismos geradores de exclusões não foram eliminados das sociedades contemporâneas. A história não se repete; as experiências do passado, entretanto, fornecem informações, conceitos e teorias que ajudam no entendimento e enfrentamento do presente. Que não somente as situações de párias, mas que as estruturas que geram párias sejam expostas e combatidas. É por isso que o estudo e a educação sobre a Shoá permanecem relevantes.

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