Viver gasta

Na arte e na vida o fazer se inventa e se encontra enquanto acontece

Quando o marceneiro serra um pedaço de madeira, o que sobra é a serragem. A fricção dos dentes de metal duro contra a matéria orgânica mais mole raspa o material até o chão ficar cheio de indícios da atividade do marceneiro.

A serragem é um subproduto da marcenaria. Ela é o que nos mostra que houve movimento de intenção sobre um bloco de madeira. Cada golpe de formão ou corte de serrote aprimora, pela prática, a intenção do marceneiro que depois pode gerar uma teoria ou técnica própria sobre o seu fazer.

Todo movimento de intenção deixa vestígios pelo mundo. “Viver gasta” diz a artista brasileira Ida Feldman. O gasto, a sobra, o resquício é o que encontramos de alguém que se colocou em movimento, que entrou em ação. Atividades criativas costumam sujar, gastar, deixar marcas. É a panela gasta e o lixo cheio na hora de cozinhar. É a tinta nos pincéis, nas mãos, no chão e até nas paredes na hora de pintar. Mas também realização, apreciação e aprendizado.

É por isso que não dá para negar as atividades artísticas como metáforas da vida, pois na hora da produção de arte nos movemos em busca de meios para dar forma à intenção. E é manipulando a matéria, o corpo e, porque não, o mundo que ocorre o movimento do crescimento do ser humano.

Luigi Pareyson (1918-1991), filósofo italiano da estética e da existência, dizia que a produção de arte possui um fazer particular que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer. Ou seja, na atividade artística, o fazer se inventa e se encontra enquanto acontece.

Sabe o que mais a gente inventa enquanto faz? A vida.

No fundo queríamos muito um manual pronto. Escrito, organizado e ilustrado para aplicarmos no nosso cotidiano e assim não errarmos nunca. A questão é que vida não tem manual. Primeiro vivemos, depois fazemos o balanço entre os erros e os acertos e teorizamos à respeito do vivido.

A possível existência de manual significaria estancar as possibilidades de descoberta, invenção e aprendizado no caminho. Na fantasia de possuir um manual não há erros, tudo é preciso e eficaz. Mas sem panela suja, manchas de tinta ou serragem não se inventa, não se descobre, não se aprende. A “sujeira” é o rastro do movimento das intenções de um processo que visa a nossa própria transformação.

E quem somos sem a possibilidade de dar movimento, dar vazão às nossas intenções? Servos de um sistema que nos diz como viver e soterra potencialidades latentes. 

A arte, ou atividade criativa, é metáfora para o viver: nos posicionamos no mundo alterando tudo no processo, inclusive à nós mesmos – o que é o mais importante.

Por isso a obra de arte está para o artista assim como a serragem está para o marceneiro. Ela é a “sobra” de um processo que tem como resultado a transformação do próprio artista.


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