O não fazer de todo dia

Não fazer também é uma ação. Melhor já ir se mexendo

“A vida é um fazer de todo dia”. Li esta frase em 2018, em um folheto exposto no mural de uma escola de psicanálise francesa relacionando o dito com a crescente onda ultradireitista que quase levou a presidência de lá alguns meses antes.

O folheto convocava a resistir às forças políticas e sociais que parecem querer minar a liberdade ao propagar dogmas que restringem a pluralidade humana. Mas será que somos solapados por quem quer tirar nossa liberdade em nome de uma pseudo-ordem ou distraídos nos permitimos afundar no excesso de informação e sermos dissolvidos pelo algoritmo das redes sociais?

Mesmo não havendo um manual para a vida, existe muita gente disposta a pagar por um e outros tantos vendedores de manuais. Nenhum funciona porque viver é uma prática teorizável e não teoria aplicável. Primeiro se vive, depois se pensa a respeito. Mas conceber isso é assumir que somos muito mais responsáveis por nossas vidas do que gostaríamos de admitir.

Um fazer de todo dia estabelece a direção ao infinito de desejos e possibilidades. É infinito porque nunca se chega. Nunca se chega porque nada define a chegada. É fazer de todo dia se for trajetória. Quem acha que chegou, na verdade, já morreu.

No Festival de Literatura de Jaipur, Índia, deste ano, o linguista e filósofo Noam Chomsky é questionado sobre o que fazer em um mundo que parece se tornar cada vez mais autoritário. E a resposta de Chomsky, falando online e ainda lúcido aos seus 92 anos, foi que a luta constante e dedicada sempre foi a única alternativa independente da época e não há fórmula mágica que nos desonere da responsabilidade de assumir as nossas lutas de maneira concreta e assertiva.

Parece, então, que não apenas a vida é um fazer de todo dia, mas a democracia também. Assim como a justiça, a empatia e a alteridade. Nada está pronto e sempre vai ter gente para retroceder o nível civilizatório.

Na mesma palestra, Chomsky ainda delimita que as forças reacionárias sempre tentaram se articular – na opinião dele, Trump tentou fazer uma grande coalisão reacionária mundial – e não se esquivou em delimitar o Brasil como um país neofascista para, na sequência, afirmar que não há bons exemplos entre as lideranças mundiais, muito menos na retórica. A frase dita de maneira tão lúcida para uma plateia digital de milhares de ouvintes parecia sugerir quase que um puxão de orelha de um vovô sábio dizendo: “Crianças, vocês vão ter que sujar as mãos e arrumar tudo isso”.

Será que dispersos e resignados venceremos? Vemos o país se destruir nas mãos da incompetência e da omissão. Já não há afronta ao bom senso o suficiente para se deliberar soluções concretas sobre os nossos destinos ou ainda ficaremos inertes perante a ausência da fórmula ou de um líder?

Para cada problema da humanidade – clima, corrupção, economia etc. – existe uma série de soluções factíveis, que podem ser minuciosamente analisadas com respaldado em estudos amplamente divulgados e das quais exemplos práticos podem ser usados como modelo ou mesmo replicados. Assim, a verdadeira questão é: vamos agarrar a oportunidade para implementar as soluções e mudanças que precisam ser feitas? Nesta hora, tanto faz ser otimista ou pessimista, diz Chomsky, aproveite a oportunidade para superar os problemas. O otimista é aquele com coragem de dizer “vamos fazer isso”. Mesmo que não possua um manual.

Confesso que ser brasileiro e escutar isso me causou um sentimento estranho. É como se fossemos uma nação de pessoas sequestradas, alienadas da própria potência e da liberdade civil de influir em Brasília, mas este talvez seja o meu lado ativista de sofá que – por mais que não queria admitir – espera que façam o trabalho por mim e me chamem quando estiver tudo pronto.

No final da palestra o interlocutor pergunta a Chomsky qual o segredo de estar tão ativo aos 92 anos, e eis que este responde: “é só admitir que o mundo ainda está acontecendo”. 

Um mundo acontecendo só é possível no gerúndio.


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